Fragmentos de fuso horário
Temos que nos apropriar das cidades com os pés
Edgar Morin
I
Tudo começa no DNA e encontra o ápice no estágio terminal. Costumo dizer que o intervalo entre o início e esse estágio é minha biografia. Nessa brincadeira de viver, busquei equilíbrio e estou quase no meio da linha. Tropeços e breves quedas, corrida atrás do tempo perdido e contrário e o êxito inesperado. São Paulo. Vinte e quatro de outubro, horário de Brasília. Filha única de mãe com seis irmãos. Estou feliz por ser filha única. Nada foi fragmentado. Amor. Objetos. Atenção. Inteiros para mim.
O tempo estendeu-se. Coloquei o verbo em ação a partir das 5h20min, pois passou a noite tentando materializar-se. Às seis, vesti a segunda pele, peguei nome e sobrenome e fui cumprir a rotina. No caminho, vi pessoas corriqueiras encenando o que se espera todas as manhãs. Sentado, um homem segurava na boca um cigarro e na mão um rádio onde pronunciava-se a oração católica do dia.
Na esquina, um outro homem a esperar algo ou alguém. Encostado na parede, a segunda pele era o uniforme do trabalho, desgastado pelo tempo e labuta. Na contramão, uma mulher de branco ia para o trabalho com a mesma cara de todos os dias. O cabelo era a marca do calendário corrido de segunda a sexta. Calada (sabe-se lá o turbilhão de pensamentos que fervilham naquela mente), sem o rádio ou qualquer outro objeto. Meus passos seguiram as linhas retas brancas do meio da rua. Poucos carros, bicicletas na contramão (a depender do ponto de vista).
O trânsito pode ser um interessante objeto de análise quando observado às seis da manhã. Ruas cheias de vazio aguardam gente cheia de hipóteses para desenhar o cotidiano programado. Poucos carros na paisagem mundana carregam gente que passa depressa e não consigo ver o rosto. Nem o cargo.
À tarde, a configuração das ruas de uma cidade do interior fica diferente. As hipóteses tornam-se certezas na figura dos pedestres. Gente nos carros e gente com rodas nos pés, gente que se movimenta com tranquilidade, gente. A tarde termina cedo aqui e antecipa-se mais ainda se o tempo fica chuvoso e escuro. Às 16h23 parece 17h30 se o céu não está azul.
Estou em casa. Para em minha janela uma mulher e pergunta o nome da dona da casa onde moro. Uma pergunta atrás da outra e a chuva cai. Quando passa, fica a paisagem cinza que espera a noite. Mais um TCC me espera na madrugada. Preciso de uma pausa.
Dia depois e hoje era eu quem estava na contramão. O corpo indeciso entre ficar no dia de ontem e ficar inteira para o dia de hoje. A água é o bálsamo consolador que alivia o tédio das noites mal dormidas. Levada ao rosto, tira os restos mal sucedidos das horas que me antecederam.
Novamente coloquei na bolsa nome e sobrenome, o rosário que foi de minha avó e das gerações anteriores, molho de chaves que abrem todas as portas do meu mundo. Abri as portas da rua. Manhã parcialmente repetida, se comparada a ontem: o homem estava lá, mas sem o cigarro e sem a proteção da oração no rádio. O outro homem também.
Mais fortalecido pelas experiências do dia anterior, já não estava encostado na parede e talvez cansado de esperar por algo que não chega. A mulher de branco vestia hoje uma blusa branca em tons de vermelho. Calada, conversava com os próprios pensamentos que não consegui ouvir e em nada alteraria minha rotina se ouvisse.
Cheguei ao espaço das formalidades. Corpos cansados, assim como o meu. As proteínas nos são fartas e conseguimos chegar ao final do período com as horas devidamente arredondadas. Conversa com os desafetos, às vezes, ajuda a tornar o dia diferente. Fiz isso hoje. Na caixinha onde fico aconteceram coisas boas. Decomposição numérica e do cansaço, fato e ficção no exercício autobiográfico. Ninguém levou a personagem para casa. Na volta para casa, 3 bermuda masculinas por 100,00; movido a biodiesel S-10; cuidado veículos, amigas conversando na padaria e a fila de carros e gente caminhando, mas não com a mesma efervescência de antes da pandemia. Algo está diferente.
Dia seguinte e, na bolsa, o rosário que carrego desde os onze. Pertencia à tataravó de minha mãe e tia. A tataravó orava muito no rosário, cuja longevidade é de trezentos anos. Foi bem cuidado pelas mulheres da família nesse período de tempo. O rosário sempre fica com a mulher caçula. Tataravó, Vincenza Moliterno, bisa, avó Vincenza Tandello, Terezinha Luizari, Rosa Acassia Luizari, futuro incerto. Não tenho filha.
Corpo grosseiro. Lacunas entre uma vivência e outra. Jornada com rupturas. Surge o grotesco e o desenho se expõe no papel. O mesmo desenho assume novas dimensões na vertical. Visão, cílios, o não-olho. A estrada corta o rosto binômio que se encara face a face. duas metades masculinas, femininas. A linha reta é versátil. Permite várias possibilidades. Deixar-se preencher a montanha em branco. O arame em grupo esconde a visão da montanha. A montanha tem linhas retas, altos e baixos. tudo em equilíbrio. Tudo à carvão, no sábado pela manhã.
Às sete horas redondas, tirei meu corpo da cama no domingo. Dia de descansar carregando pedra. Nova newsletter, atualização da minha vida no diário e o resto do dia todo para rememorar. Ao chegar da rua, lembrei do descaso de um parente na despedida há cinco anos (um aperto de mão miserável há cinco anos, ao invés de um longo abraço). Lembrei do quadro de Pedro Américo que pintou a cena histórica que ele não viu. Não viu a Independência. Nem a Morte.
Por falar em datas históricas, o dia seguinte ao domingo é 15 de novembro de 2021 e minha república foi proclamada há muito tempo. Não mais medo de cara feia, voz grossa ou de fusos horários diferentes dos meus. Da cara feia eu faço retrato, da voz grossa uma ideologia e dos fusos horários diferentes dos meus uma página de livro. Cada vivência minha é uma composição de micro-histórias e a ausência delas no livro didático das formalidades pouco importa. Gosto de pensar em questões que talvez não estejam ao meu alcance responder agora. Gosto de pensar no que vem depois de hoje, depois da ausência, de conseguir o que desejo.
Meu campo existencial é um constante espaço de questionamentos. Não me lembro quantas vezes pensei nisso. Acho que pensar sobre o pensar ocupa muitos minutos do meu fuso horário já tão cheio de compromissos. Não quero entrar em parafuso. Quero pensar no que vem depois de hoje, da ausência e de conseguir o que desejo. Fazer isso de modo ponderado.
Um dia depois de ontem, a rua acordou cedo. Mais carros, mais gente andando na contramão, mais barulho. Encontrei pessoas diferentes das que vi nos dias anteriores. Talvez aquelas tenham estendido um pouco mais o feriado de 15 de novembro. No espaço das formalidades, fiz o dia ser favorável a mim (descobri que posso fazer isso sempre que quiser). Penso na calmaria e ela vem, após muito trabalho. Hoje dialoguei com os afetos e isso também faz o dia diferente e torna o fechamento de ciclos mais leve.
Na caixinha onde fico, progresso visível a olho nu. A singularidade feminina ganha força e significado quando os ajustes ortográficos são feitos no caderno da aluna e nas vivências compartilhadas entre ambas. Duas meninas frente a frente, crescendo juntas. (Já passei por isso um dia). Me lembro das inúmeras vezes em que a mulher de hoje foi menina em vários dias letivos no espaço das formalidades bem sucedidas no boletim. Hoje colaboro para o desenvolvimento intelectual de outras meninas que serão mulheres e, sendo também meninas, farão outras desabrocharem.
O dia de ontem prolongou-se até agora. É dia 18, mas tem horas que passeio pelo calendário, meio na dúvida. Noites mal dormidas mexem com nossa cabeça. Você não acorda, apenas levanta. Na conjugação do verbo dormir, certamente o eu durmo não me representa. Marco no mesmo calendário pelo qual passeio as noites bem sucedidas em termos de sono. Faço um círculo à tinta para destacar o número relacionado ao feito heroico e efêmero comemorado por mim, discretamente. Às vezes aparece só um número circulado em trinta dias, outras vezes, metade do mês fica sabendo que dormi bem. Meu calendário é uma eterna sucessão de rabiscos.
Alerta nos quatro períodos do dia, enxergo vantagens nisso tudo. Se a vela cair, dá tempo de pegar antes que aconteça o inevitável; se o estranho bater à janela, provoco nele estranhamento imediato e se houver a trama em equipe, recomendo o salmo 91 (protege você até da mensagem que foi apagada).
Segunda-feira. Tive uma noite relaxante. Apenas isso. O relógio gritou às cinco e a rotina, no período da manhã, foi idem aos dias anteriores. À tarde, concepção de linguagem em Bakhtin, teses, dissertações, produção de sentidos. Tudo junto e misturado nesse momento.
No período da tarde, a cidade é outra. Carros em sentido contrário, gente em múltiplos sentidos, problemas sem solução. O espaço das formalidades foi duplamente experimentado hoje. De manhã, amargo, à tarde um doce que não divido com ninguém. Gente diferente, igual, maior e menor, gente ao redor. Para viver esta cena, tirei do armário o vestido casual preferido. Toda roupa preferida esgota-se em si mesma. Usamos como se fosse a única enquanto do guarda-roupas despencam peças de todos os tamanhos e cores. Ele nem fecha direito de tantas peças P, M e G que abrigam, Mas insistimos na preferida.
Mudamos os acessórios e os sapatos para fingir a troca de roupas e seguimos avante. E viva aquela nossa roupa que tem história para contar! O duro é quando lembram que você já usou a mesma roupa na formatura, trabalho e rua, e lembram em alto e bom tom. Aí o jeito é rir pra não chorar.
Dia vinte e três e hoje mudei de rua. É uma forma de mudar a rotina. Mais flores, plantas e cores. Menos gente. Isso muda tudo. Observo a natureza. Ela se movimenta de modo diferente. Nem sempre a fotossíntese se deixa fotografar, mas se acontece, muda meu mundo particular. Colonizar uma flor não é algo simples. Ela sente quando você se aproxima e sabe o que você quer. É preciso ganhar a confiança dela para desvendar-lhe o íntimo. Ela conta segredos para quem confia. Se desconfia, trabalho dobrado.
No dia seguinte, nenhuma flor colonizada.
Quinta-feira a rua estava mais autônoma. Às 6h15min o processo de colonização das ruas é menos intenso. O caos ganha tímidos contornos no período da manhã.
Na sexta, o dia amanheceu chorando. O dia cinzento escondeu o calor do sol e proibiu a correria na volta do trabalho para casa. No espaço das formalidades, dei atenção aos papeis que me esperavam. Pilhas de digitados à mesa se oferecem para ser lidos. Ela chega todos os dias, confere o relógio, sobe e desce escadas o tempo todo. O corpo desce, quase sem necessidade, e a mente fica no andar de cima. Querem domesticar os corpos, os movimentos. Querem tapar com a peneira os laços rompidos. Fiquemos todos de joelhos no andar de cima, pois é sexta-feira. Graças a deus.
II
-Introduza intervalos em tua rotina - recomenda o cansaço generalizado. Busca nos sábados e domingos o campo aberto para a coragem de estampar a cara ao sol. É no sábado que dorme o ataque coletivo dos problemas e agitações. No domingo, encontra águas de descanso e foge da presença dos teus adversários. (O cansaço perde a batalha e renova o corpo para o calendário que começará em breve). Que caia por terra os minutos de calamidades. Não terei medo. Não estarei desanimada. Encontro refúgio no poder de ressureição da carne cotidiana cujos pulmões respiram ausência de pesadelos. -Transborda a paz acumulada nas bordas do corpo- grita o cansaço.
No domingo, tenho livre arbítrio sobre o meu fuso horário. Transformo oito horas em cinco e assim começo o dia. Mais tempo na cama é o preparo do corpo para um despertar mais tranquilo e uma escrita mais produtiva. Sou dona do meu próprio sistema de produção. Por isso, deixo preparado o caderno com a caneta azul dentro. Não quero que escape a beleza do ordinário e o detalhe do eterno e do efêmero. Anoto quase tudo. O cotidiano tem uma potência que eu nunca havia reparado. Ele me fez enxergar algo que olho todos os dias: a minha bolsa.
Todos os domingos, organizo a minha bolsa de valores para carregar o eterno e o efêmero durante a semana. Ela abre a bolsa e se solidariza com o caos ali presente. Amuleto do signo de escorpião, a foto impressa da cidadã, a sacolinha de remédios, cartões de bancos, moedas. Há tempos não carrega o batom há muito escondido por trás da máscara antiviral. Todos os objetos se conectam a ela. Os ausentes a esperam em casa e os objetos de dentro da bolsa brigam entre si na busca pela permanência. A briga termina quando ela procura algo e todos querem ser notados. Sorte do escolhido. Ou não. Ele não pensa em ser descartado, em ser ordinário. Se pudesse, compraria um cantinho eterno na bolsa de valores com as moedas que o rodeiam. Sente-se jogado à própria sorte.
Na bolsa, encontram-se estranhamento e familiaridade. O telefone desconhecido e a fotografia 3x4, às vezes, caminham juntos. São unidos pelo caos e vem à tona quando a arrumação se faz necessária. O sentido dos objetos é privatizado pela dona da bolsa, sempre aos domingos.
Hidratação. Caminhada. Oração. Batom. Tudo antes das sete da manhã. O present perfect na ponta do lápis aguarda a prova do dia trinta. Passei o domingo carregando pedra e a consequência é um cansaço infinito a fazer parte dos relatórios arquivados na pasta.
O cansaço tomou parte do meu cotidiano. Devido a isso, todo o calendário é sempre estendido para o dia seguinte. Assim, amanhã eu faço tornou-se palavra de lei. Só não posso deixar o amanhã para depois. Pode não dar tempo.
Quando ela se cansa, o corpo não funciona do mesmo jeito. O dia ganha horas a mais e menos produtivas. O tempo recusa-se a passar. Fica lento. Ela arrasta o tempo, as horas, o cotidiano. Não sabe se para hoje ou se muda de ano. Ela se deita. Agora o cansaço é porque o dia resolveu se prolongar na noite. Foram doze horas de extensão e apenas meia hora para o sono. Suspirei de cansaço e para formalizar a sensação de mais um dia ganho e vencido.
A fuga de alguns espaços é necessária para o encontro consigo mesma. Levantar-se mais tarde, trocar a função da caneta, investir tempo e dinheiro na bolsa quase cheia de valores. O levantar-se mais tarde ameniza o cansaço, o uso outro da caneta permite a inovação do objeto e aproveitar ao máximo o peso do dinheiro na bolsa, antes que o próximo boleto o dissolva.
A pele cansada busca refúgio na noite. Não encontra. Espera amanhecer para levantar e cumprir a segunda parte do dia que não anoiteceu.
Mente sem descanso pronta para cumprir as obrigações do dia porque não conseguiu cumpri-las até ontem. O final de semana se transforma em começo. O corpo em alerta levantou às cinco e vinte. Tomou café, comeu meio pão, cumpriu rotina. O doce de chocolate ajuda a despertar e essa ideia me levou à padaria às seis e quinze. Às dez o doce já fazia o efeito de preencher o vazio, mas apenas esse efeito. O sono prolongou-se até às doze horas.
Terça-feira e hoje me deu vontade de fazer poesia. O poema é contexto e composição. É uma experiência que corre nas veias vinte e quatro horas do dia. As vinte e quatro horas do meu fuso horário incluem poesia no cardápio. Sim, posso degustá-la, fazer cortes, diminuir a quantidade, comprar a granel. O que corre nas veias vinte e quatro horas por dia às vezes é sol e, às vezes, sombra. O que corre nas veias é um contexto cheio daquilo que nem sempre vasculho. Não sei se é pó, palha ou palavra.
Quando é sol o que corre nas veias, inúmeros olhos me enxergam e aplaudem o fim das táticas desgastadas para que a fórmula dê certo. Quando é sombra, a força do corpo e da alma preparam-se para agir caso a força bruta queira um espaço de referência em mim. Quando o que corre nas veias é palavra, minha síntese está na foto 3 x 4. Costumo dizer que carrego fotossíntese comigo.
Às dezoito e trinta da quarta-feira, o inusitado. Recebi a visita de um casal de beija-flores. Entrou dentro de casa brigando. O que suponho ser o marido entrou primeiro, como a pedir socorro enquanto apanhava. A namoradinha ou esposa o perseguia e eu a assistir o gracejo. Em meu quarto, eu digitava um texto enquanto minha cama tornou-se palco da discussão. Três penas ficaram no lençol. O beija-flor que apanhava fingiu-se de morto deitadinho na televisão, de olhos abertos, enquanto a agressora, desesperada, parecia sentir-se culpada por deixá-lo daquele jeito. Cheguei perto para observar e ele, parado, me fez pensar que havia deixado esta vida. Ao retirar-se do quarto a agressora, ele voou para sentar à porta, como se nada tivesse acontecido. Fingiu-se de morto para deixar de apanhar.
Fiquei aliviada ao ver a boa estratégia utilizada pelo beija-flor para sobreviver. Como em briga de marido e mulher não devo me meter, continuei meu trabalho. Ela, arrependida, ficou no varal a esperar por ele, que preferiu dormir dentro da minha casa do que passar novamente pelo sofrimento de ser maltratado. Ajeitou-se em uma sacola verde em cima da geladeira e dormiu. Bem mais do que eu.
III
A escrita de não-ficção é uma forma de contar minha história única. Começo a fazer um curso de escrita e vejo a relevância de uma caixa de correio quase imperceptível em uma casa após a outra. Tantas caixas de correio. Será que as cartas chegam? Há tantas cartas quanto caixas de correio pela cidade? Imagino a expectativa dos moradores de algumas casas quando esperam a chegada de notícias de longe. O destinatário, do lado de dentro dos muros, aguarda a carta que demora a chegar. (Pode ser que não chegue).
Boa noite vô
até amanhã. Tchau.
Tchau. Boa noite. Vão com Deus.
Na conversa, pai, filha e neto, às 21h16, bem debaixo da minha janela. A fala se repete e a despedida é reforçada.
(Este homem não precisa esperar pela correspondência).
IV
Sextou. De um modo mais leve e solitário. O cheiro do produto de limpeza que vem do corredor do espaço das formalidades purifica a alma e me dá certeza de um final de semana mentalmente despoluído. Na sala de aula, o remetente e o destinatário colocados frente a frente me trouxeram a certeza de dever cumprido. Sextou de um modo mais leve e solitário somente até às quatorze horas. Meia hora depois, eu fazia a leitura de textos injuntivos espalhados pelos corredores.
ATENÇÃO
SILÊNCIO NESTE LOCAL.
AUTORIZAR O RAIO-X
NA RECEPÇÃO
SORRIA
VOCÊ ESTÁ SENDO FILMADO.
Parede rosa claro, azulejos brancos, cadeiras pretas. Nada de choro, gritos infantis nem lamúrias. Na emergência, pressão alta, acidente de moto e os sintomas de AVC compartilham o mesmo espaço. Hoje meu fuso horário atingiu o ápice da loucura. Depois das 14h00 perdi a noção exata do tempo. Sirlei Cristina. 222. 224. AVISO. proibido filmar ou fotografar sem autorização. Só esperar. Beleza. Vai com Deus, viu? 225. 226. “Que enfermeiro grosso, eu só fui tomar água ali e ele disse senta e espera. Eu trabalhei na área da Saúde e já vi muita m____ e sou do tipo que quer ver o preparo do remédio que vão me dar”. Preparar o psicológico. Enfermeiros merecem um lugar no céu. Alprazolam 1, 5 mg. Citalopran 30 mg. Descobri a cura da insônia. E viva o bate-papo entre as acompanhantes de quarto! (Remédio somente com prescrição médica).
Enquanto a geração que me antecede era medicada devido à pressão altíssima, o espaço das formalidades que eu tinha para observar agora era outro. Às dezenove horas, corredor completamente vazio. Observo o alinhamento das lâmpadas, o moço da limpeza a jogar água no corredor e puxando a mesma com um rodo grande e comentando com um colega o cheiro forte que vinha de fora. Neste lugar, corredor vazio é coisa rara. O funcionário do raio-X disse para o colega: “Cuidado, ele chega às 20h30”.
Sentada no banco do corredor, descobri que a estagiária de olhos castanhos entra no serviço do raio-X. Prefere aventurar-se dentro do local à noite e em dia de semana porque aos sábados e domingos quer fazer o almoço de família.
O funcionário vestido de azul me olha de longe porque estou ali há tempo. Cinco minutos se passaram e vejo uma mulher no corredor vestida com roupa estampada. Sentada longe de mim, aguarda ser atendida (Nesta vida, cada um com suas emergências).
Às 19h30 a irmã de minha mãe está deitada no leito coberta por um fino lençol verde. Eu a olho pela porta. Um enfermeiro está na emergência olhando para ela. Dois olhares com diferentes pontos de vista. Um da observação. O outro do coração. A esperada liberação não chegou e a minha noite prolongou-se na cadeira de acompanhante. No setor de pediatria, a TV em volume alto e programação de gosto duvidoso são o auge do desrespeito com os doentes, mas nada que o diálogo não resolva. À meia-noite, pedi a uma moça de jaleco branco que desligasse a TV. Para isso, subiu na cadeira e desligou na tomada, pois não achou o controle remoto. (Eu continuei ligada).
Foi a primeira vez que experimentei a insônia em um local pouco desejável. Três pessoas com a saúde fragilizada. Duas acompanhantes. Nunca esperei tanto a chegada de um novo dia. Nestas horas, o detalhe ganha uma dimensão que nos absorve e o que é visto geralmente como uma “grande coisa”, assim se torna após momentos de preocupação e angústia. De volta para casa, no sábado a partir das dez horas, compra do mês no supermercado e administração de remédios o resto do dia. Idem no domingo. A bagunça no fuso horário foi generalizada, mas a geração que me antecede está sã e salva.
Este artigo foi escrito por Rosa Acassia Luizari e publicado originalmente em Prensa.li.