Gal: coisas sagradas permanecem?
Adriana Calcanhotto, híbrido exemplar de cantautora e intérprete, está em turnê com um show em homenagem a Gal Costa, morta em novembro passado. Nesta quinta, 11, a turnê passou por São Paulo. Por infeliz coincidência, já era certo que o show seria também em homenagem a Rita Lee, a mais completa tradução da cidade, que faleceu na segunda, 8.
“Lhe dizer adeus quer dizer que estamos no começo de tantas outras grandes despedidas dessa geração de tantos ídolos”, escreveu Flor Gil no Instagram sobre a morte de Rita. Na foto, ela está entre a cantora e o avô, Gilberto Gil (o que dá ao post um tom meio mórbido, espero que sem querer). Comentava essa passagem com um amigo horas antes de ver o show de Adriana: não sei se para todo mundo, não sei se, por causa desse post, só para mim, mas a morte de Rita Lee pareceu a grande constatação de que estamos no fim definitivo de uma era. A geração dos anos 1940 está morrendo. Foram-se Gal, Erasmo, Rita... “Será que, quando morrer o último, saberemos que acabou?”, pergunta meu amigo.
O show começa com uma espécie de epígrafe: em “Recanto Escuro”, o verso título da turnê, “coisas sagradas permanecem”. Antes disso, na narração dos créditos, uma alegria para os mais aguerridos fãs – do diretor, Marcus Preto, à banda, passando pelo cenário (obra prima de Omar Salomão) e inclusive pelo roadie, Lirinha, todos fizeram parte da equipe por trás dos últimos discos e shows de Gal, aqueles pelos quais muita gente jovem (como eu e como boa parte do público do Tokio Marine Hall) a conhece mais. A pegada, especialmente nos arranjos, fortes e modernos, é a mesma.
Adriana, no entanto, está muito consciente de que não é Gal. Apesar de alguns agudos desnecessários vez ou outra, ela garante grande presença de palco e impecável performance sem parecer roubar a cena da estrela do show. Em outras palavras, definitivamente não parece um tributo, muito menos uma turnê com substituta. De algum modo, é um show da Gal, ela só não está fisicamente ali.
Por outro lado, se fosse para aproximar esse show de alguma coisa, seria de um fan film. Da panela na cabeça na primeira música (referência ao modo como Gal aprendeu a cantar) à presença discreta do banquinho original de “Fatal”, são muitos os easter eggs. É coisa de fã para fã. Aliás, exceto por um grande momento em “Esquadros”, esse show provavelmente tem pouca graça para quem só queria ver a Adriana Calcanhotto mesmo.
Entre clássicos e lados B, com performance precisa – enérgica e calculada – o show cativa por todas as mais de duas horas de duração. Tudo culmina no pedestal vazio iluminado em “Vapor barato” (nunca antes tocada com um solo tão roqueiro e virtuoso, verdadeiro equivalente musical de uma ode gritada aos prantos) e com as mãos apontando o céu no encerramento absolutamente apoteótico de “Dê um rolê”.
Rita Lee, a homenageada óbvia, além da presença no repertório regular, com a excelente “Quando”, dos Doces Bárbaros, mereceu uma imitação no bis, em “Bem me Quer” – com direito a óculos, microfone vermelho e até uma leve emulação de timbre. Mereceu também um dos easter eggs: depois do truque da camisa aberta sem sutiã, d’O Sorriso do Gato de Alice, já em “Bem me Quer”, Adriana vem ao palco enrolada na bandeira de São Paulo, que abre para mostrar o torso nu. A referência? Um episódio que marcou o início de sua carreira, quando, a convite de Rita, participou de um show da cantora em Porto Alegre, entrando no palco coberta apenas por uma capa e se despindo ao som de “Miss Brasil 2000”.
Mas esse momento singular, em que Adriana Calcanhotto cede sua turnê a um grande show da Gal sem Gal, pela própria celebração de um repertório que já não pode ser desvinculado da homenageada, pôs, na minha cabeça, em cheque a mensagem de que “coisas sagradas permanecem”. O que será dessa memória, das referências obscuras, desses lados B? Sem Gal aqui, isso se dilui. Não de uma vez, mas aos poucos, como se esvai a força de um filme cujos realizadores já morreram todos. O que será de “Um dia de domingo” ou “Vapor barato”? Sim, serão tocadas em bares e pubs à exaustão, mas, sem Gal Costa para carregá-las, para possuí-las, o que se tornarão? Que fim levam as canções sem dona?
Quando chorarmos o último ídolo, saberemos que acabou? Saberemos o que acabou? Depois de chorado o último ídolo, as coisas sagradas permanecerão?
Este artigo foi escrito por Diogo Leite e publicado originalmente em Prensa.li.