Go, Bafana! Outras aventuras na Copa 2010!
Imagem: Zakumi/Copa 2010
Na última vez em que passamos por aqui, falava sobre as agruras de minha nova amiga russa, Alya, com leões brincalhões num parque da África do Sul. Ela desistiu de me acompanhar, para fazer algo mais seguro, tipo bungee jump. Minha próxima parada era o complexo de cavernas de Maropeng, próximo daquele parque.
O complexo é mais conhecido como Cradle of Humankind, em bom português “o berço da humanidade”. Trata-se de um imenso sítio arqueológico de 47 mil hectares, com fósseis de hominídeos, animais e plantas, descoberto por acaso. Assim como o acontecimento que acabou dando relevância ao local.
Um pequeno passo para a humanidade
Dois milhões e meio de anos atrás, um jovem australopithecus africanus corria em um campo aberto quando pisou onde não devia, abrindo um buraco no teto da caverna. Caindo de quinze metros, acabou indo desta para melhor.
Em 1924, dois arqueólogos entraram no complexo de cavernas e acharam sua ossada completinha, a mais antiga e completa de um hominídeo encontrada até hoje. Curtindo uma fama póstuma, repousa hoje no Museu local. E comprova que adolescentes deveriam escutar mais seus pais e não sair por aí correndo pela savana.
Caso tenham se esquecido, eu estava no país para cobrir o que acontecia de inusitado durante uma Copa do Mundo. Mas até agora, não tinha me aventurado a sequer entrar em um estádio.
Bola para a frente!
Mudei isso em 20 de junho. Fui ao imponente Soccer City (um dos estádios mais bonitos que conheci, se bem que não conheço muitos) e resolvi testar se meu crachá dava acesso às arquibancadas, quem sabe ao campo. Dava.
O jogo era entre Brasil e Costa do Marfim. Confesso que estava furiosa: Dunga, o técnico da Seleção, teimoso, não convocou Neymar, Ganso, Robinho e André, que na época voavam baixo no meu Santos. Tenho certeza que a história seria outra.
Entrei depois que o jogo começou, saí antes de acabar. Mas vi o Brasil fazer um golaço, classificando-se para as oitavas, numa partida que teve Drogba, soco, tapa, pontapé, cartão vermelho para Kaká e dois gols de Luis Fabiano, sendo que um deles não teve la mano de Dios, à moda argentina, mas teve o braço.
Minha modesta e quase ordinária opinião: futebol é futebol em qualquer lugar do planeta. A torcida fica um pouco diferente numa Copa; vi dinamarqueses, chilenos, neozelandeses, gregos e portugueses, trajando a nossa amarelinha e torcendo pelo Brasil como se o fizessem desde criancinhas. Assim como uma tremenda galera de outras nacionalidades com as cores da Costa do Marfim.
A diferença mais gritante em relação a outros jogos foi a venda e consumo de cerveja no estádio, proibida legalmente pelos nossos lados. Isso se repetiu quatro anos mais tarde, na Copa do Mundo do Brasil. Sim, a Fifa é responsável pelo que pode e não pode dentro do estádio, alterando temporariamente leis nacionais. Sinistro.
O mundo é (muito) pequeno
Depois de voltar para o hotel, estava um pouco elétrica por causa da movimentação do jogo e resolvi esticar as pernas. Praticamente do outro lado da avenida existia um centro de compras de tamanho médio (chamar de shopping seria exagero). Na área externa havia um barzinho com um tremendo senso de oportunidade: naqueles dias, mudou o nome temporariamente para Bargentino, aproveitando que a seleção e boa parte da torcida argentina hospedava-se ali perto.
O sotaque de Buenos Aires era corrente. Decorado com as cores azul, branco, amarelo e preto (os gremistas sentiram-se em casa), o local virou uma baladinha, cheia de hermanas, hermanos e gente de todas as nacionalidades.
O técnico perdido
Numa destas idas aos shoppings locais, tropecei no técnico Carlos Alberto Parreira, que comandou a vitoriosa Seleção Brasileira do tetra, e havia liderado a seleção sul-africana, os Bafana Bafana. Havia, pois apesar da vitória sobre a França na véspera por 2 a 1, foi desclassificado pelo saldo de gols.
O pobre Parreira parecia cachorro caído do caminhão de mudança. Batemos papo na praça de alimentação. Seus desabafos renderam uma notinha no dia seguinte, principalmente porque apesar da eliminação, os sul-africanos estavam felizes com o desempenho de sua Seleção. Bem diferente daqui.
Som na caixa
Na primeira parte desta reportagem-memória, disse que conhecia pouco sobre a África do Sul, além do Waka Waka da Shakira. Resolvi corrigir a falha e pesquisar sobre a música pop local. Achei muita coisa legal, mas virei fã justamente do conjunto que acompanha a colombiana naquele clipe. Chamado Freshlyground, traz uma sonoridade que mistura rock, folk, além de ritmos tradicionais de várias partes do continente.
Liderado pela vocalista Zolani Mahola, o Freshlyground tem o repertório em inglês, zulu, swahili e outros dialetos. Tem integrantes de outros países e etnias. O tipo de coisa que só daria certo na África do Sul. Comprei um CD lançado na ocasião, Radio Afrika, e hoje tenho todos em streaming.
Sabores de todos os tipos
Naquele Bargentino, conheci o Tab, um refrigerante de cola zero, sem cafeína, pelo qual me viciei progressivamente. Havia uns duzentos tipos de Fanta, que não tínhamos aqui. Minha preferida: abacaxi. Experimentei também a Sparletta Crème Soda: um treco verde escuro e opaco, doce como caldo de cana. Reza a lenda, sabor baunilha.
Sucos são comercializados em garrafas iguais aos dos desinfetantes, feitos por uma subsidiária da Danone. Todos bons, apesar da embalagem.
No prato, além das carnes, duas coisas me encantaram: filé de calamari, ou seja, de polvo ou lula, de tamanho considerável. A consistência lembrava chinelo de neoprene, mas o gosto compensava; e os prawns.
Ah, queridos prawns. Pra mim, o camarão em inglês sempre foi shrimp. Lá descobri que se dividiam em shrimp (quando camarões normais) ou os tais prawns, camarões de tamanho exagerado. Acredite, foi de marejar os olhos de uma catarinense acostumada com camarão.
Não vimos arroz ou feijão.
Um capítulo à parte são os chocolates, maravilhosos, mas… ao contrário das texturas cremosas que tanto gostamos, a maioria ameaça perigosamente a integridade de obturações, restaurações e similares. É o jeito que eles gostam.
Doces e chocolates sul-africanos são, na maioria, duros. Quebram fazendo barulho, estalam como um graveto partindo. Mas é apenas o doce. Ou seu pré-molar esquerdo. Muitos iguais aos nossos, como KitKat ou Crunch, mas capazes de suportar o impacto de cinco toneladas. Meu preferido era o Milo, com seu recheio cristalino de menta. Havia o Lion (bem óbvio), Bar One e Laduma. A maioria com versões em sorvete de palito.
Havia um sem número de iguarias de sabores incomuns para o Brasil; algumas me deixaram muito feliz. Você encontrava tudo feito com lichia, aquela frutinha parecida com o cruzamento de um morango e porco-espinho; e também, banana. Sorvetes, sucos, doces… foi divertido.
Na riqueza e na pobreza
Não poderia dar por encerrada essa aventura sem contar o lado histórico e cultural da viagem. Fiz questão de conhecer o bairro Soweto, que apesar da sonoridade não é uma palavra em idioma local, mas o acrônimo de South Western Townships. A região onde brancos confinavam os negros na vergonhosa época do regime racista do apartheid.
Muitos imaginam a África do Sul como um país pobre, e Soweto como o canto mais miserável. Eu pensava assim. Não poderia estar mais errada. Como nosso brasilzão, o país tem regiões riquíssimas, de invejar muita nação europeia. Isso também vale para o Soweto, que não é uma grande favela.
Seu início foi realmente horroroso. Com o tempo, muitos prosperaram, sobretudo a partir dos anos 1990. Vi ali casas de classe média alta, para dizer o mínimo. Mas também as habitações de lata, que fazem as favelas brasileiras parecer mansões. O Soweto é um microcosmo da gigantesca diferença social sul-africana.
O herói de todas as cores
E sim, fui atrás do grande personagem dessa história, Nelson Mandela, Madiba para os íntimos. Aos 91 anos, bastante debilitado, foi abatido por uma tragédia familiar logo após a Fan Fest da abertura da Copa. Sua bisneta, Zenani, na ocasião com 13 anos, morreu num acidente automobilístico a caminho de casa. Mandela não compareceu à cerimônia de abertura e tornou-se cada vez mais recluso. Sua última aparição pública foi na final do campeonato, a contragosto. Faleceu três anos depois.
O homem que desafiou o regime do apartheid e se tornou um líder amado pelo povo, é um herói nacional. Não cheguei a visitar a perturbadora Ilha Robben, o presídio onde ficou detido por quase três décadas. Mas conheci a casinha onde viveu, em pleno Soweto, hoje transformada em museu. Você sente a História viva, ali. Assim como no Museu do Apartheid, onde confesso, saí mal. A humanidade é desumana, dizia Renato Russo.
Feridas na alma
Marcas do apartheid estão bem arraigadas, dentro da tradição local. O transporte público é feito quase exclusivamente por vans à diesel, usadas por negros. Pejorativamente, são chamadas Black Taxis. Estão em toda a cidade.
Os brancos (ou os negros com maior poder aquisitivo), contam com táxis mais confortáveis, em sua maioria automóveis Mercedes-Benz. Alguns de último tipo, outros com décadas de uso. Depende de quanto você pode pagar.
Percebi que às vezes o mesmo trajeto tinha valores bastante díspares. O taxímetro era o cérebro do motorista, o fator de cálculo, a cara do passageiro. Esses carros são conhecidos também como White Taxis. Não preciso dizer mais nada.
Leva o casaquinho
Para encerrar, uma história para mudar paradigmas. Você pensa em África, savana, sol, elefante e um calor danado, certo? Errado. Era inverno. Fazia um frio lascado e com umidade em níveis baixíssimos em todo o país. Na maior parte do tempo, oscilava entre zero e cinco graus nas ruas. Durante o dia.
Andava com roupas térmicas, botas, luvas, cachecol, casacos pesados, gorro e todo o tipo de roupa que pudesse me aquecer. Pegar uma corrente de vento, com a face descoberta, no meio da manhã, equivalia a tomar um tapa invisível na cara. Não recomendo.
Mesmo adulta, com quarenta anos nas costas, lembrei da minha avó: leva o casaquinho, menina. Vai fazer frio. Sim, ela sempre estava certa. Imagino que lá de cima, viu orgulhosa a neta se deslocando pela cidade parecendo uma astronauta.
Segundo os meteorologistas, não fosse a secura do ar, teríamos neve naqueles últimos dias. Na final da Copa, entre Países Baixos e Espanha, alguns flocos deram o ar da graça sobre o Soccer City. Mas não pude vê-los.
Os mesmos Países Baixos (também conhecidos como Holanda) eliminaram o Brasil nas quartas de final, e com isso, o jornal resolveu encurtar a viagem dos colaboradores, deixando apenas um repórter em território sul-africano até o término do campeonato.
Restaram boas histórias e recordações. E esconjurei tão bem esconjuradinho os Países Baixos por não me deixarem ver a neve, que perderam para a Espanha!
Eu volto!
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.