Gokushufudou - Tatsu Imortal: John Wick ano zero ou dono de casa com passado?
Você, macho moderno, que lava a louça e tira o pó da casa; homem hipster, que cozinha as refeições e assiste a conteúdos que não gosta muito para agradar a companheira; chegou a vez de você ser exaltado.
Chegou à Netflix um novo exemplo de masculinidade:Tatsu Imortal, também chamado de "o Dragão Imortal" por aqueles que sabem de seu passado como membro de uma família da máfia japonesa, e de Taitai por sua adorável esposa. Sabendo que ele não gosta de ser lembrado do seu passado e não tendo toda essa intimidade com o protagonista, eu certamente o chamaria de senhor Tatsu ao passar por ele na rua.
A curtíssima animação – 5 episódios de 17 minutos ou 29 episódios de uns 4 minutos, dependendo de como você contabiliza – foi lançada em outubro de 2020 no Japão e em abril de 2021 no resto do mundo através da Netflix (seguindo o padrão de outras animações feitas em parceria com a empresa de Los Gatos). Ela conta a história de um homem que tenta levar uma vida simples, cuidado do seu lar enquanto a esposa, Miku, ganha a vida trabalhando como designer em tempo integral.
Olhando assim, pode não parecer, mas o anime é uma comédia nos mesmos moldes do mangá a partir do qual foi adaptado, contando histórias curtas da rotina e do dia-a-dia de Tatsu, coisas que seriam banais com outras pessoas, mas que ganham um tempero extra por ele ser um ex-membro da máfia.
Quase uma representação de sua identidade, Tatsu usa sempre um terno com corte e cor dignos de um chefe da Yakuza e o cobre com um avental de cachorro, a coisa mais inofensiva e caseira possível, e vai ao mercado, cuida da casa, faz a feira e prepara as refeições. Em resumo, tudo o que você e eu fazemos, só que com muito mais estilo.
Aos poucos vamos descobrindo sobre o passado do protagonista e o que ele ainda carrega daquela vida. Após cumprir uma missão muito semelhante à do personagem John Wick em seus filmes, Tatsu se desvincula da máfia e, ao estilo de Wick, abandona o submundo, mantendo apenas seus já citados ternos, as tatuagens e cicatrizes que marcam seu corpo.
E uma faca escondida na cintura, que segue um estilo tradicionalmente utilizado por yakuzas em facas e espadas, mas acaba sendo desembanhada para fatiar vegetais em sua nova vida.
A obra de Kousuke Oono tem seu senso de humor focado fortemente na quebra de expectativas, a começar pela abertura com seu ritmo de hard rock cantada com uma voz rápida e gritada de quem parece estar falando coisas pesadíssimas, mas em verdade narra um dono de casa em suas atividades, como aspirar a casa com bastante cuidado e pendurar as roupas no varal.
Tal como a música, os personagens são “sérios”. A situação é que torna tudo leve e engraçado. Quando o protagonista está com pressa e é parado por policiais, o espectador é levado a acreditar que ele os ameaçará ou até mesmo partirá para a agressão com sua faca escondida, mas como agora leva uma vida honesta, tudo o que Tatsu faz é entregar um cupom de descontos como tentativa de suborno, para depois sair pedalando sua bicicletinha. Se você conseguir rir dessa cena, terá ótimos momentos assistindo a Gokushufudou, nome que preferiram não traduzir para o ocidente, mas significa o caminho do dono de casa, ou o estilo de vida do dono de casa.
A estética da animação transforma cortes de custos em estilo e beleza. Com diversas cenas quase estáticas, como se fosse apenas uma câmera indo de um quadro do mangá para outro, servindo com forma de transmitir o suspense que será quebrado em instantes ou mesmo mostrando diversos ângulos de uma situação. Se fosse mal executada, lembraria aqueles desenhos (des)animados da Marvel que foram feitos nos anos 60, mas graças ao esmero da equipe estúdio J.C.Staff Co. o resultado fica superior à forma como as ações seriam normalmente animadas.
Vale ressaltar a qualidade das dublagens, tanto a japonesa quanto a brasileira, que são excelentes, sendo a voz do protagonista feita por Kenjiro Tsuda, um renomado dublador japonês, que empregou sua voz em animes conhecidos como Yu-Gi-Oh!, Beyblade, One-Punch Man, Boku no Hero Academia, Jujutsu Kaisen, dentre outros.
Já no Brasil, o dublador Dláigelles Ribamares Silva, conhecido como a voz do protagonista de Deuses Americanos, dá um show variando os tons na medida certa para o personagem, daria pra acreditar facilmente que ele fez a voz original para o trabalho, tamanho o encaixe tanto em sincronia quanto na personalidade do personagem.
Apesar do background do protagonista parecer ser fortemente influenciado pela trilogia de filmes protagonizada por Keanu Reeves, as semelhanças param por aí. Tatsu é uma pessoa sociável, que interage com a vizinhança e vive um casamento feliz. O ponto que o tira disso e faz a história acontecer é quando um antigo capanga reconhece Tatsu e o convida para voltar a vida de crimes, e o desfecho é o único possível em uma história como essa:
Seu ex-capanga se torna uma espécie de discípulo, aprendendo sobre como ser um dono de casa, de dicas para tirar manchas de roupas, ao preparo de refeições saborosas, tudo vai ter um duplo-sentido que remete a algo criminoso mas é tão inofensivo quanto bicarbonato de sódio em roupas brancas. Inclusive, anote a dica e tente isso da próxima vez que uma roupa ficar manchada.
Mesmo que partindo de um gangster da pesada, Gokushufudou traz um novo arquétipo, algo necessário para nos afastarmos mais do estereótipo do “homem provedor”, que ganha o dinheiro e prende a esposa às tarefas domésticas, se recusando a lavar um copo ou trocar uma fralda por ver qualquer uma dessas atividades como “coisa de mulher”.
A realidade já se afasta desse clichê arcaico faz tempo, mas é ótimo que a ficção venha colaborar com essa desconstrução, eu tenho idade suficiente para me lembrar de quando Dragon Ball não tinha letra nenhuma no título e a Chi Chi era uma guerreira ainda criança, para depois virar a esposa (que é tratada quase como se fosse a mãe) do Goku na sequência da história, onde deixa de lutar e passa a cozinhar e lavar roupas pelo resto da sua vida.
Tatsu está aí para mostrar que nem só de Rodrigo Hilbert vivem os exemplos. Não precisa ser o perfeitão que faz tudo sozinho e com maestria. Tatsu comete alguns erros durante suas tentativas e isso o torna um modelo mais atingível. Dá pra ser um bom marido mesmo sem nunca ter entrado em uma gangue e saber disso é algo reconfortante.
Então bote um avental e faça o jantar de hoje para você e seu par amoroso, mesmo que seja apenas um omelete ou um pão com queijo na chapa, acompanhado por batatas fritas na airfryer, e comam assistindo Gokushufudou.
(imagem de capa - Divulgação/Netflix)
Este artigo foi escrito por Gustavo Borges e publicado originalmente em Prensa.li.