Guerra, notícias e vodka
Não precisa nem legenda para compreender o horror | Imagem: Jhou
Em uma guerra, a imprensa costuma ser uma das primeiras vítimas. Claro que nesta não seria diferente: logo nos primeiros combates, o russo Putin decretou médias cerceando o ofício de informar. Na prática, censura.
Algumas medidas são simbolicamente pífias, lembrando muito o que acontecia aqui após o golpe de 1964. No Brasil, os jornais substituíram notícias por receitas ou previsão do tempo.
Em Moscou, uma rede de televisão privada se viu obrigada a mudar a vinheta “Guerra na Ucrânia” por um inocente “O que acontece na Ucrânia”, para suavizar o impacto na opinião pública, que não era muito simpática ao líder de governo.
A mídia impressa moscovita ganhou uma série de regras restritivas. Aquilo pode, aquilo não pode, isso deve ser evitado… na prática, censura.
Do outro lado do front, as táticas de contra informação de Zelensky, o comandante supremo da Ucrânia, utilizam principalmente as redes sociais, entregando com previsão o que deve ou não deve ser visto. Analistas internacionais dão conta que ironicamente os ucranianos têm feito melhor uso destas mídias, campo sempre fértil do lado russo.
A luta do bem contra o mal?
E por aqui? Como a nossa Televisão tem abordado o conflito?
Num primeiro momento, o tradicional sentimento de Davi contra Golias tomou conta de boa parte das redações: certo, a invasão russa foi desmedida e arbitrária, e os interesses putinianos vão muito além de evitar que a OTAN coloque um pé no seu quintal.
Boa parte dos veículos se esquivou de cobrir a zona cinzenta do conflito, os interesses de ambos, transformando Zelenski em celebridade instantânea.
Apesar de toda a descomunal diferença de poder entre os lados, numa guerra ninguém é santo. Fora que nós, brasileiros, adoramos transformar qualquer embate em Fla-Flu. De eliminação do BBB às escaramuças internacionais.
Agora temos torcedores fanáticos pela Mãe Rússia, e há aqueles que torcem pela Ucrânia desde criancinha. No embalo das sanções internacionais contra Putin, tem restaurante da modinha em São Paulo que retirou estrogonofe do cardápio. Estrogonofe. Que é um prato bem mais brasileiro que eslavo.
Quero ver coragem para cancelar a vodka.
Passando vergonha via satélite
No afã de dar notícias primeiro, a TV brasileira se apressou e em muitos casos, cometeu bobagens jornalisticamente imperdoáveis.
Videogames: saída muito questionável | Imagem: TV Jovem Pan News
Caso da TV Jovem Pan, que no desespero de exibir imagens exclusivas antes da concorrência, colocou no ar imagens do videogame Arma 3, como se fossem os combates em solo ucraniano.
A Record TV, aparentemente gostou do que viu e fez exatamente a mesma coisa durante o Jornal da Record, muito provavelmente usando as mesmas imagens da Pan.
Claro que a historinha só colou até que o pessoal mais antenado nos games percebesse e entupisse as redes sociais denunciando a traquinagem. Alguns memes surgiram rapidamente, o melhor colocando o jogo Super Mario Kart no lugar dos combates.
Arma 3 é um videogame com gráficos bem realistas, mas ainda assim, um videogame. E isso tem um nome, mentira. Ou para ficar mais no espírito do nosso tempo, fake news, como bradava aquele sujeito de pele estranhamente alaranjada, até recentemente no comando da maior potência do planeta.
Missão: Impossível
Outras emissoras fizeram a lição de casa de maneira correta, caso de SBT e Band. Mas o correr dos dias mostrou que o estrago do ataque russo foi subestimado: os correspondentes Sérgio Utsch e Yan Boechat se viram em situações difíceis e potencialmente arriscadas para exercer seu trabalho, inclusive impedidos de se comunicar com o Brasil, deixando famílias e colegas bastante apreensivos.
Já a trindade TV Globo/Globonews/G1, com estrutura compartilhada, porém, bem superior à concorrência, fez bem seu trabalho. Mas caiu em armadilhas nada agradáveis para o bom jornalismo.
Já nos primeiros momentos, adotaram um tom bastante maniqueísta, apontando o dedo na cara dos russos (não que a Rússia esteja certa, que isso fique bem claro). Nessa toada, deixaram de lado alguns aspectos relevantes sobre a Ucrânia, como o fato de ser terreno fértil para o surgimento de células nazi-fascistas.
Lágrimas fora do lugar
O jornalismo da Globo incutiu no erro de buscar ao extremo a emoção em suas reportagens. Não que seja desnecessário, afinal o jornalismo vive de contar boas histórias, e o drama humano enriquece a matéria. Porém, esse jamais deve ser o foco central da cobertura.
A linha editorial pendeu em muitas ocasiões para o chororô habitual dos programas de Geraldo Luís na Record TV, ou mesmo nos VTs de Luciano Huck para o velho Caldeirão, ou agora para o Domingão. O oposto da tradicional linha factual e objetiva do velho JN.
Pensei falar também no comportamento esquizofrênico do governo brasileiro, no qual o Executivo é pró-Rússia, enquanto o Itamaraty, nosso órgão máximo de relações exteriores, condena a invasão. Mas entrar nessa seara seria perda de tempo.
Equilíbrio complicado
Quem vem apresentando as cobertura mais completas, por assim dizer mais equilibradas, têm sido a CNN Brasil e a BandNews TV. Ambas trabalham com calma, lançando mão de comentaristas e analistas.
Contando com o prestígio e a estrutura da “nave mãe” | Imagens: CNN Brasil
A CNN tem a vantagem inegável da parceria com sua matriz norte-americana, ao passo que a BandNews depende exclusivamente das agências internacionais e do material produzido pela sua irmã da TV aberta, a Band, que conta com uma bela tradição no segmento.
Record News não tem ido muito além do apresentado pelo jornalismo da Record TV, videogames à parte. Porém, quem melhor soube usar limitações como vantagem foi a Cultura. Mantendo seu expediente tradicional, traz em toda edição de seus telejornais analistas e debatedores, aprofundando a informação, apresentando um conteúdo mais assertivo que a concorrência, ilustrando os assuntos com as imagens das agências internacionais, como as demais.
Eu volto!
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.