Há futuro para as mulheres na NFL, mas elas precisam de um passado
Não deve ser surpresa para ninguém que nenhuma mulher jamais tenha jogado na NFL, mas já tivemos várias fazendo parte de comissão técnica, administração esportiva, na imprensa e até como donas das franquias. O que talvez possa ser uma surpresa é que nenhuma mulher jamais foi indicada ao Hall da Fama do futebol americano profissional.
Mesmo não havendo uma liga profissional feminina e com 100% dos jogadores e a grande maioria dos técnicos e administradores da NFL sendo homens, seria natural que a maior parte dos imortalizados em Canton fossem homens, mas não ter nenhuma mulher soa até estranho.
Originado nos Estados Unidos como uma variação do rugby no final dos anos 1890, o futebol era inicialmente um esporte exclusivamente masculino, um esporte de cavalheiros. Cabia às damas somente ficar nas arquibancadas (e não sujar seus vestidos correndo nos lamacentos campos da época).
Há até um caso famoso ocorrido em 1896 em Nova York em que a polícia foi chamada para parar uma partida entre dois times femininos. A reportagem do New York Times da época relata que a partida foi divulgada, mas não recebeu grande público e algumas pessoas que passavam pelo local viram as mulheres dando tackles umas nas outras e acharam que se tratava de uma briga generalizada.
O futebol daquela época realmente devia parecer uma grande briga generalizada, não havia regras de onde podia-se fazer contato e nem a regra de linha de scrimmage, mas ver um grupo de mulheres divididas em 2 grupos com uniformes diferentes fazendo isso e não imaginar que elas podiam estar praticando um esporte mostra a visão limitada da época.
Claro que o mundo foi mudando e o esporte foi mudando com ele. O futebol levou algumas décadas para ganhar uma forma e regras que o fizeram parecer com o esporte que tanto apreciamos hoje.
Boa parte das táticas, nomes e formações do futebol se originaram em termos militares e de guerra, várias são usadas até hoje, como Hail Mary, trincheiras, blitz e ataque aéreo e ataque terrestre. A maior parte dos ditados antigos também se originaram no exército como “aqui homens se tornam soldados” e “aqui se separam os homens dos meninos”.
O ponto é que de certa forma, essas frases ainda demonstram machismo e há um tempo já, o próprio exército aceita mulheres. Na verdade, os Estados Unidos foi um dos primeiros países a ter tropas exclusivamente femininas.
Alguém poderia argumentar de que numa situação de guerra, o número total de soldados importa e as mulheres são mais ou menos 50% da população e poderiam ajudar e muito um exército, isso não deixa de ser verdade. Só que nesse mesmo argumento, tudo o que deixa de fora 50% da população é um grande desperdício de potencial e esses outros 50% (as mulheres) poderia contribuir em qualquer empreitada, incluindo o esporte.
Contribuir é a palavra-chave aqui. O Hall da Fama do futebol americano profissional, localizado em Canton, Ohio é composto de um museu com diversos itens históricos e um memorial, em que ficam os bustos das personalidades que foram imortalizadas por sua contribuição ao esporte. O museu resgata itens que marcam passagens ou números históricos e há diversas contribuições femininas lá como uma camisa com o nome de Jen Welter, a primeira mulher a ser treinadora profissional de um time, o microfone e fone de ouvido de Beth Mowins, a primeira mulher a narrar um jogo de NFL na TV e o boné de Sarah Thomas, a primeira árbitra profissional da história da NFL. É um começo, mas menos de 1% dos itens do museu estão relacionados a mulheres no esporte.
Entrar no memorial, porém, é uma outra história e talvez seja a maior honra possível no futebol americano. Para ser eleito para o Hall da Fama, uma pessoa precisa ser indicada, o que é simples, qualquer um pode indicar qualquer um e uma pessoa pode até se autoindicar. Um comitê de 45 pessoas (que só tem uma mulher atualmente) vota nessas indicações em que são tiradas as 100 pessoas mais votadas. Há uma nova votação sobre essas 100 em que sairão 15 e 5 serão eleitos automaticamente para o Hall, com os outros 10 indo para uma espécie de “repescagem”. Já aconteceu de os 15 indicados serem aprovados, mas também já houve vezes em que o comitê foi bastante rigoroso e só aprovou 2 além dos 5 obrigatórios.
Há 3 categorias para uma pessoa se eleger ao Hall da Fama:
1 – Jogadores. Claramente, nenhuma mulher se qualificou nessa categoria. Algumas posições, inclusive, têm uma dificuldade enorme de indicação, como punters, que só tem um imortalizado lá (Ray Guy), nenhum long snapper e nenhum full back desde a década de 1980.
2 – Treinadores. É bem recente a participação de mulheres nas comissões técnicas dos times. A pioneira foi Jen Welter em 2015 e houve algumas outras desde então, com nenhuma delas ficando tempo o suficiente ou tendo conquistas o suficiente para valer a indicação. É difícil ser eleito para o Hall da Fama como técnico, há só 26 treinadores entre os 326 homenageados e todos ou venceram mais de um Super Bowl (ou título pré-Super Bowl), ou fizeram parte da fundação de um time ou foram técnicos e donos.
3 – Contribuidores. Essa é a categoria mais genérica de todas e inclui ex-comissários, executivos das franquias e membros da imprensa. Também não é fácil entrar nela, foram só 26 os homenageados nela e a grande maioria dos homens aqui foram donos ou fundadores de franquias, mas é a que teria maior probabilidade de incluir uma mulher.
Duas mulheres já bateram na trave como imortais do Hall da Fama.
A primeira foi Georgia Frontiere, que foi dona dos Los Angeles/ Saint Louis Rams por 30 anos, de 1979 a 2008. Com ela no comando, os Rams chegaram em 3 Super Bowls e venceram 1 (talvez com mais um Troféu Lombardi, ela teria entrado). Ela foi votada entre os 100 indicados 2 vezes, mas acabou não entrando para o grupo dos 15. Se entrar no grupo dos 100 novamente nos próximos 10 anos, suas chances de ser imortalizada aumentam bastante.
A segunda a bater na trave foi a jornalista Lesley Visser, que bateu inúmeros recordes na mídia americana e se tornou a primeira mulher comentarista de NFL da TV. Ela recebeu indicações algumas vezes, mas nunca ficou entre os 100. Por suas conquistas, foi homenageada em 2006 com o prêmio Pete Rozelle, que o Hall da Fama dá a um membro da imprensa todo ano.
Há esperança para as mulheres além dessas duas.
Nesse momento há 8 mulheres fazendo parte da comissão técnica de 7 franquias diferentes (o Buccaneers tem duas) e nenhuma delas tem mais de 35 anos de idade, o que dá a elas bastante tempo (não que o tempo seja a maior questão). Além disso, há uma árbitra (Sarah Thomas, que é fortíssima candidata se mantiver o alto nível no apito por mais tempo e for subindo de função dentro da arbitragem) e mais duas em treinamento que podem entrar na liga num futuro próximo.
Desde 2017, a Amazon transmite jogos da NFL em seu serviço de streaming e desde 2018, a empresa inovou colocando uma transmissão 100% feminina, com uma narradora, uma comentarista e repórteres de campo sendo todas mulheres.
Como executivas, há 4 franquias cujo dono majoritário é uma mulher - Lions, Bears, Steelers e Chiefs - e 1 em que uma mulher tem participação nas ações - Bills. Sendo realista, para uma dessas proprietárias ter chance, seria necessária uma reviravolta enorme em Lions e Bears e uma maior participação de Patricia Rooney no Steelers (além da criação de uma nova dinastia por lá) e de Norma Hunt no Chiefs (mesmo que a franquia vença mais Super Bowls num futuro próximo). Da forma com que essas franquias são administradas, nenhuma parece ter qualquer chance no Hall da Fama.
Quem desponta com maior potencial por incrível que pareça, deve ser Kim Pagula, dona do Buffalo Bills junto de seu marido, Terry Pagula. A família Pagula comprou os Bills em 2014 e tem dado uma nova cara à franquia, com uma administração mais moderna, focada em apagar os terríveis anos desde os Super Bowls perdidos nos anos 1990.
Kim Pagula é presidente de um grupo que controla 8 empresas, incluindo o Buffalo Sabres da NHL (hóquei) e o Buffalo Bills da NFL e tem participação ativa nas decisões da franquia como uma empresa. Ainda jovem (51 anos de idade) e com o futuro promissor da equipe, não seria surpreendente imaginá-la em Canton um dia se os Bills conseguirem vencer mais de um Super Bowl sob sua gestão.
Cada vez mais temos mulheres se destacando, seja na mídia, na política ou nos negócios, ainda há um longo caminho até a igualdade entre os gêneros, mas parece claro que há um futuro das mulheres na NFL, tanto nas comissões técnicas, quanto na arbitragem e no corpo administrativo das equipes. Com isso, deve ser questão de tempo ter uma mulher como imortal no Hall da Fama.
Pode parecer que não, mas quando isso acontecer (e a questão é mesmo “quando” e não “se”), será uma revolução, um marco para a entrada das mulheres num dos últimos panteões exclusivamente masculinos do esporte mundial. Claro que isso não será um corretivo histórico ou um sinal de tudo irá mudar, mas sim um sinal de que as portas da NFL estão realmente abertas para elas, com as meninas podendo olhar a NFL como uma oportunidade de trabalho e não como uma coisa exclusivamente masculina.
Será mais um passo para mostrar que o esporte é mesmo para todos.
Este artigo foi escrito por Flavio Minei e publicado originalmente em Prensa.li.