(Há muito) Amor no Espectro
"Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos.” — Dickens, Charles (1859)
Nosso mundo está repleto de caos e polarização, creio que isso seja incontestável. A questão é que esse mesmo mundo cede espaço a Amor no Espectro; um reality documental sobre autistas buscando romance que dá até um quentinho no coração de quem assiste.
Na mesma realidade em que existe De Férias com o Ex e sua praia repleta de corpos malhados e mentes que carecem de mais exercícios, também se faz presente Amor no Espectro. Assista a história de pessoas autistas que têm amigos, empregos, famílias que os aceitam e tudo o mais, só faltando alguém pra chamar de “mozão”.
A série atualmente tem duas temporadas (dedos cruzados por mais), e mostra jovens adultos e suas pacatas vidas na terra dos cangurus. Conhecemos um pouco de cada um, seus hobbies, suas dificuldades de iniciar interações e relações; além da grande característica comum a todos: querer amar e ser amado.
Achou que eu iria dizer “o autismo”, não foi? Mas é aí que vem a compreensão do termo espectro: uma representação das amplitudes ou intensidades. Ou seja, autistas, assim como japoneses e outros pensamentos generalistas preconceituosos, não são todos iguais.
Não existe um autista modelo ou uma autista padrão, o que existe é uma série de características das quais cada pessoa no espectro demonstra algumas. Exatamente como você pode comprovar assistindo, os participantes são únicos e diferentes entre si.
Nada de Rain Man, Good Doctor e afins
Autistas podem ser tagarelas, gostar de música alta, de abraço (se for uma pessoa muito próxima), podem até mesmo formar grupos humorísticos como o Asperger's Are Us.
São pessoas como você e eu – até porque eu sou um deles mesmo – contadores, motoristas, estudantes universitários… Quem está no espectro apenas tem um cérebro que funciona de maneira atípica. Inclusive, taí outra ótima dica na Netflix, Atypical.
The Bachelor jamais chegará aos pés de Amor no Espectro. (imagem: Divulgação/Netflix)
Andrew, Chloe, Kevin, Maddi, Mark, Michael, Olivia. Você vai conhecer cada um desses solteiros; além dos casais já estabelecidos, Thomas e Ruth, Jimmy e Sharnae. E isso só na primeira temporada! Talvez você suspeite que alguém seja neurodiverso logo de cara, talvez conversasse com um deles sem nem perceber que é uma pessoa autista.
Se quer mesmo algumas características para entender melhor o autismo antes de assistir e se viciar em Amor no Espectro, aqui tem alguns dos comportamentos comuns a quem está no espectro autista:
Evitar contato visual, olho no olho;
Comportamentos repetitivos;
Dificuldades de interação;
Baixa compreensão de linguagem figurada;
Grande desinteresse pela maioria dos temas e enorme interesse por temas restritos;
Dificuldade em entender linguagem não-verbal.
Não busque reconhecê-los através de atributos físicos. Autistas podem ser homens e mulheres de qualquer etnia e idade, dotados da mesma capacidade de se parecerem com um “humano normal” que os skrulls ou a Mística, dos quadrinhos do X-men.
Assistindo aos depoimentos, à preparação para os encontros em si, os dates que dão certo e os que dão errado, as famílias desejando boa sorte ou mesmo dando uma carona até o local; você se encontrará torcendo para que esses jovens descubram o amor. Mais que isso, você vai se identificar com eles, a ansiedade, o “será que vai dar certo?”... Afinal, encontrar um amor verdadeiro nunca foi fácil para ninguém.
Como diria o Greg: “Cara, ela ta tão na sua!” (Imagem: divulgação/Netflix)
Um ponto que é bom deixar claro, eles buscam amor, ninguém falou nada sobre a cara metade estar ou não dentro do espectro. Então não se assuste ao perceber que autistas podem namorar pessoas que não têm nada de autista, não é uma regra nem um tabu.
Uma ajudinha sempre vai bem
Algumas das pessoas que a série documental acompanha recebem a visita de Jodi Rodgers. Especialista em relacionamentos que trabalha há mais de uma década ajudando autistas a melhorarem suas habilidades de socialização.
Jodi mentora os jovens antes de alguns encontros, ajudando para que se sintam melhor preparados, dando pequenas dicas, ensaiando como devem se portar na ocasião e como manter uma conversa. Honestamente, eu recomendaria umas aulinhas com ela até para alguns conhecidos que estão fora do espectro.
Jodi Rodgers, mas pode chamar de versão australiana de Hitch - conselheiro amoroso (imagem: Facebook da Jodi)
A segunda temporada chegou com novos autistas e uma nova chance para alguns da temporada anterior que ainda buscam o amor. — “Mas e a pandemia?” — Você pergunta — Acontece que na Austrália eles souberam tratar do problema, e não foi com cloroquina. Então por lá é seguro andar na rua ou mesmo ir num encontro sem máscaras.
Para os inexperientes participantes, cada pequena conquista é celebrada, de ter conseguido não ter um ataque de pânico durante o encontro (infelizmente é algo que chega a acontecer), até a alegria de terem se dado bem o suficiente para marcar um segundo encontro.
“Quais são suas intenções com a minha filha?” — Deve ter dito o pai da Heather (como qualquer outro pai do planeta) quando sua filhinha levou Michael para um almoço de família. (Imagem: divulgação/Netflix)
Autismo e sexualidade
Autistas enfrentam uma grande dificuldade para formar vínculos, se fazer amigos, interagir com familiares e, obviamente, começar um namoro ou um flerte.
Dito isso, é preciso destacar o quanto são bem resolvidos. A maioria ali está tendo o primeiro encontro de toda a vida, mas já sabem o que buscam.
Entre os participantes, uma quantidade considerável se declara bissexual ou panssexual antes mesmo de ter um encontro de verdade. Seguindo a própria orientação, alguns têm encontros com homens e mulheres.
Teo resolveu que estava pronta pra namorar, então foi a dois encontros, um dia com um homem e outro com uma mulher. Se divertiu em ambos. (Imagem: divulgação/Netflix)
Para dar uma noção do quanto o pessoal tem as prioridades no lugar certo, eles dão mais valor a se a pessoa é fã de O Senhor dos Anéis ou se é contra Donald Trump, do que se fica em pé ou senta quando vai ao banheiro.
Eu juro que esses tópicos, e muitos outros, rolaram nos encontros.
Acho ótimo como Amor no Espectro trata de forma banal que autistas queiram namorar, casar e formar família. Que ninguém esteja nem aí se uma pessoa quer ter um encontro romântico com uma mulher ou um homem. É nesse tipo de sociedade, nesse “tempo” (para voltar ao começo do texto) que o mundo poderá evoluir e que vale a pena se viver.
Agora só resta esperar por mais temporadas, quem sabe versões em outros países ou mesmo um spin-off que arrume um par romântico para a querida Greta Thunberg. Essa jovem autista sueca que ganhou fama mundial ao protestar pela defesa do meio-ambiente:
Greta pode combater o colapso ambiental global E ter uns dates, não é mesmo? (imagem: Greta no Pre-COP 26 Summit, conferência sobre mudanças climáticas. GIPHY News)
Imagem de capa - Divulgação/Netflix
Este artigo foi escrito por Gustavo Borges e publicado originalmente em Prensa.li.