Há uma ‘ditadura’ da mídia programática?
“A consciência é o melhor livro de moral, e o que menos se consulta.”
Blaise Pascal
Há alguns anos, quando a mídia programática chegou no Brasil, a empresa Sleeping Giants Brasil foi acusada de fazer anúncio de sites que propagavam notícias falsas (fake news), o que levou a uma grande discussão sobre a ética na modalidade. Mas, o que seria ética?
Ética tem a ver com o termo ETHOS, do grego, que não se sabe direito seu significado, mas se consolidou como “caráter” ou “modo de costume”. Segundo Werner Jaeger, em seu livro Paideia, clássico da filosofia e da pedagogia, o ETHOS era o espírito grego e os gregos representavam sua alma.
Hoje, a ética – dentro da filosofia e da pedagogia – tem a ver com o que a moral trabalha e seus meios de construir uma áurea social. Um espírito de cada etnia.
Em um estudo mais genealógico do termo ética, ETHOS queria dizer, nos primórdios, algo como “moradia de homens”, ou seja, muito remotamente, a casa dos moradores das polis gregas eram chamadas de ETHOS. Nos faz pensar que a modificação para o “caráter” não seja à toa, porque nosso íntimo também é chamado de “casa”.
Mas, e o “modo de costume”? Foi o que levou os romanos a traduzir ETHOS para MOR ou, no plural, MORES e deu origem ao termo moral. Nós, latinos e latino-americanos, adotamos a moral como espírito social porque presamos o costume muito mais do que o caráter. A questão é que, por isso mesmo, Roma e muitos reinos medievais caíram, pois os costumes eram muito mais importantes do que o caráter de cada um.
Com a chegada das mídias digitais com as redes sociais, a discussão ética volta sempre à tona. Porque, queiramos ou não, em cada perfil existe uma pessoa que tem seus valores e, com esses valores, se tem o caráter (ethos). Ou seja, o caráter dará o caminho (methodós) para fazer certo (como modo de propagar uma ideia ou um produto) ou errado (propagar a ignorância ou a mentira).
Do mesmo modo, há um marketing certo, não agressivo, como há o marketing agressivo (invasivo). Daí começa a questão da internet e dos sites que participamos, pois recebemos milhões de bits dentro de pacotes de dados todos os dias das nossas bandas largas. Além de, claro, se poder ter malwares e afins (como escrevi em outro artigo na Prensa sobre ética).
A questão da mídia programática é a questão da automatização do marketing de coisas não muito éticas, de propagação de ignorância com informações não checadas, ou informações não verdadeiras. Inevitavelmente, teríamos de perguntar: o que é a verdade? Porque, quando você coloca “o que é”, algo acaba sendo e, se algo é, existe conforme critérios universais e únicos.
Por exemplo, não matar é um conceito moral e ético universal, porque você está violentando um corpo que não é seu e não tem o direito de fazê-lo. Mas tem uma outra questão: e a defesa do seu próprio corpo diante de uma ameaça? Uns vão dizer ser válido matar para se defender, outros são a favor da não reação. Mas e se, mesmo reagindo, a pessoa quiser te matar? Há uma aporia (uma indagação sem saída) moral aí.
Poderíamos colocar do mesmo modo, se esse tipo de anúncio pode ser eficiente ou se essa tática só faz agredir e obrigar o usuário a ver anúncios que não quer ver? A questão se amplia com o algoritmo ser programado a ter ligações sistemáticas com sites de compras e sites de procura para te oferecer, até mesmo, algo que você já comprou.
Por que a Amazon tem o direito de se encher de nomes de livros de um autor que eu pesquisei? Por que sites de compras querem a todo custo uma avaliação do produto que você comprou? Isso, em essência, não é muito “democrático” e é muito pouco liberal. Porque se pressupõe que somos coagidos a interagir com esses sites a todo momento, a toda hora. Isso recai na ética.
O cerne do capitalismo é a privacidade do cidadão, porque o modo de vida capitalista é liberal. Tudo que temos na nossa sociedade é uma propriedade privada, nosso, ou seja, entre se nós deixarmos entrar.
Parece que o modo de redes sociais criou uma brecha, o perfil se torna público e, como perfis são públicos (segundo esse critério), as pessoas devem aceitar esse tipo de anúncio. Ou, segundo outro critério, se o site oferece conteúdo de graça e os sites de procura te informam de graça, alguém ou alguma coisa tem que pagar esse site ou essa rede social. O que nos faz pensar em uma outra coisa: se somos usados pelas redes sociais, então, somos o produto.
A pergunta é: somos um produto voluntariamente ou obrigatoriamente? Se somos voluntariamente, então, sendo pessoas individuais teríamos que assinar um contrato de prestação de serviços por sermos um produto (que não está em nenhum contrato de rede social). Mas não existe esse contrato e, portanto, somos obrigados a interagir, e interagindo somos obrigados a ver o que não queremos ver. A questão vai muito além: onde está a ética?
Esse tipo de coisa vai contra, até mesmo, os princípios do próprio capitalismo. A liberdade inexistente – com uma dose de ideologia – torna as redes sociais inacessíveis por causa do caos que fazem.
Acima de tudo, será a liberdade uma idealização? Será que a verdade, afinal, é uma ilusão?
Este artigo foi escrito por Amauri Nolasco Sanches Junior e publicado originalmente em Prensa.li.