Heróis de carne e osso
Nossa coluna de hoje será excepcionalmente narrada em primeira pessoa. No já distante ano de 2010, integrando a equipe de uma importante rede de televisão brasileira, “morei” em Joanesburgo, a cidade mais importante da longínqua (e incrível) África do Sul.
Fui cobrir a Copa do Mundo de Futebol. Sim, aquela marcada pelas vuvuzelas, Waka Waka e pela teimosia do técnico Dunga. Trinta e seis dias conhecendo vários aspectos do país e de seus habitantes.
Tudo ao mesmo tempo agora
Conhecido como rainbow nation ou “o país do arco-íris”, coisa evidenciada já na sua bandeira, a África do Sul tem uma mistura de etnias comparável ao que temos cá no nosso Brasilzão, mas num território muito menor.
A miscigenação fica mais evidente quando ouvimos as pessoas na rua. Diferente do Brasil, onde temos uma língua oficial e alguns sotaques, a África do Sul tem onze idiomas oficiais, sem contar sotaques e mais um monte de dialetos, alguns incompreensíveis para a maioria do planeta.
Fica ainda mais claro ao ouvir seu belíssimo hino nacional, que leva em sua letra cinco destas línguas. Procure por aí Nkosi sikelel' iAfrika (ou, numa tradução direta, Deus abençoe a África). É comum ver placas de trânsito exibindo o mesmo destino simultaneamente em Zulu, Africâner (uma variação do holandês) e inglês. Só para ficar no básico.
Cada um no seu quadrado
Esse clima “tudo junto e misturado” dos sul-africanos, que espero persistir por muitos e muitos anos, tem origem em uma história cruel e dolorida. Naquelas terras, o racismo era institucionalizado.
Não aquele racismo que certamente você já percebeu disfarçado em seus círculos de convivência, tão necessário de ser expurgado, mas um racismo de mão pesada, oficializado como política de Estado, sob o pomposo nome de apartheid.
Soweto, muito antes de ser nome de um grupo de pagode do passado, é o nome de uma região, um distrito onde eram segregados pardos e negros. A coisa era feia, muito feia na África do Sul.
Prisioneiro de segurança máxima
Naqueles tempos sombrios, surgiu um líder revolucionário, chamado Nelson Mandela. Daqueles de pegar em armas e tudo o mais. Bem diferente do Mandela que nos acostumamos a ver nos livros recentes de história, e pra quem é mais velhinho, nos telejornais.
Bem, devido a suas posições, Nelson Mandela virou presidiário. E amargou nada menos que vinte e sete anos de prisão por “alta traição”, a maioria do tempo na medonha Ilha Robben.
Dá pra imaginar que a Ilha Robben não era um resort e os carcereiros não primavam por um padrão de atendimento. E vinte e sete anos são tempo suficiente para planejar uma vingança de alto nível, com requintes de crueldade. Isso, se um dia conseguisse sair dali, o que não parecia muito promissor.
De presidiário a presidente
Depois de décadas de pressão internacional, Mandela foi libertado, em 1990. Ok, isso não spoiler, é História.
Aproveitando os ventos da democracia, foi eleito presidente do país em 1994, para a esperança de muitos e desespero de tantos outros. Muita gente imaginava que o líder iniciaria uma era de vingança e perseguição sem clemência. Vá por mim, motivos ele tinha de sobra.
Mas, não. Nelson Mandela começou ali uma política de integração e aproximação das etnias, sobretudo negros e brancos. Não foi de uma hora para outra. Era necessário vencer a linha tênue entre a confiança e o medo.
Muita calma nessa hora
Usando sua mais que comprovada paciência, Mandela costurou alianças – algumas bem inusitadas – como a descrita no filme Invictus, de 2009, nosso real assunto de hoje.
A produção, dirigida por ninguém menos que Clint Eastwood, mostra um pouco dessa África do Sul daqueles tempos, onde tudo parecia caminhar para uma explosão social.
O preconceito ainda borbulhava, tanto entre a população branca dos bairros mais abastados, quanto na população negra de Soweto e arredores.
Bola pra frente
Mandela teve uma ideia genial: o país sediaria a Copa do Mundo de Rugby, esporte favorito dos sul-africanos. Havia um grande ressentimento: devido ao regime do apartheid, times sul-africanos eram sumariamente proibidos de competir no torneio.
Isso mudaria definitivamente com a ascensão de Mandela e o fim oficial do regime segregacionista. E lá foram os Springboks, time escalado para representar a nação no campeonato.
Madiba, como era respeitosamente chamado Mandela, reuniu-se com François Plenaar, principal jogador e capitão do esquadrão. Com muita engenhosidade empreenderam uma campanha monumental que uniu o país muito mais depressa do que se poderia esperar, em torno do esporte.
Para começo de conversa, os Springboks (também conhecidos pelo apelido de Boks) eram predominantemente brancos, quase albinos (há um sem número de ruivos na África do Sul).
Aos poucos, Plenaar foi incluindo jogadores negros e mudando a cara do time. Não sem causar atritos dentro da própria equipe. O apartheid estava revogado, mas enraizado na cultura local.
Nos mínimos detalhes
Invictus (“invencível” no bom e velho latim), estrelado por Morgan Freeman, conta em detalhes estas passagens. Vale citar aqui que o próprio Nelson Mandela exigiu que o ator o interpretasse, e Freeman faz isso com maestria. Plenaar é vivido por Matt Damon.
A África do Sul cresce no campeonato, com bastante dificuldade, e, sem querer dar spoiler, já que os fatos aconteceram há quase trinta anos, ganham o campeonato contra a poderosa Nova Zelândia, num jogo que mais parece uma batalha.
A entrada da seleção adversária tem direito à impressionante Haka, uma dança de intimidação que o time neozelandês fez na ocasião do jogo. Já os vi fazendo em outras ocasiões e sim, é de meter medo.
Clint Eastwood dirigiu o filme com uma preocupação de retratar o ambiente de Joanesburgo com detalhes, e foi muito bem sucedido. É possível reconhecer diversos cenários bem conhecidos da cidade, como o histórico estádio Ellis Park (que sediou alguns jogos da Copa do Mundo de Futebol em 2010).
Assim como também estão lá a Rainbow Bridge e a Universidade de Witwatersrand (talvez a universidade com o nome mais difícil de escrever que conheço, mas apelidada como Wits), um dos locais de treino dos Boks.
Tão bom quanto o original
Mas o grande destaque é mesmo a interpretação de Morgan Freeman. Ele faz um Mandela carismático como o próprio, um líder que mesmo cansado faz tudo pela integração de seu povo.
A preparação envolveu uma conversa cara a cara, e também uma verdadeira maratona de vídeos do líder sul-africano. Chegou a detalhes bastante precisos, como por exemplo “tornar-se” destro durante o filme, já que Freeman originalmente é canhoto.
História com H maiúsculo
Mandela e Plenaar são considerados heróis nacionais na África do Sul, exemplos de tolerância e inteligência que mudaram o país. E não é força de expressão.
O filme recebeu indicações para o Oscar, Globo de Ouro, César, Screen Actor’s Guild Awards e acabou ganhando melhor diretor e melhor ator (para Morgan Freeman) do National Board of Review.
Invictus é uma grande produção, que recebeu menos destaque do que deveria, por sua importância como relato histórico e a cuidadosa reconstituição de uma época; pode ser encontrado nas lojas e sites que comercializam DVDs e outras mídias, além de serviços de streaming.
Se você não assistiu, procure. É uma bela chance de conhecer, mesmo que de uma maneira lúdica, um acontecimento da vida de um dos personagens mais importantes do Século XX. Se assistiu, recomendo rever. Ainda mais nestes tempos tão estranhos, é bom lembrar que pessoas com um espírito humano tão distinto caminharam entre nós.
"Ninguém nasce odiando outra pessoa por causa da cor de sua pele, da sua origem ou da sua religião. Para odiar, é preciso aprender. E, se podem aprender a odiar, as pessoas também podem aprender a amar."
Nelson Rolihlahla Mandela
Imagem de capa - União, perdão e inteligência - Foto de cottonbro no Pexels
Este artigo foi escrito por Arthur Ankerkrone e publicado originalmente em Prensa.li.