Hey! Teacher! Leave them kids alone!
Em 30 de novembro de 1979, o grupo britânico Pink Floyd lançou seu décimo primeiro álbum intitulado The Wall. Foi composto quase que unicamente pelo lendário baixista e vocalista Roger Waters, e foi o último a ser produzido pela formação original da banda.
As canções do disco são fatias das vivências do letrista Roger Waters que falam da perda de seu pai durante a 2ª Guerra Mundial, de sua desilusão sobre a fama, seus questionamentos e posicionamentos contra sistemas autoritários.
O álbum é uma odisseia que narra a história de um personagem fictício, Pink.
Quando se escuta música por música do disco, entendemos os motivos pelos quais personagem Pink, que representa os sentimentos de Waters, coloca tijolo por tijolo em seu muro de isolamento pessoal.
A infância sem pai, a mãe dominadora, o sistema educacional rígido, um governo autoritário que controla seu povo, desencantamento com o estrelato, um casamento alienado e até mesmo as drogas às quais ele se volta a fim de encontrar libertação. Tijolo atrás de tijolo.
The Wall é um dos álbuns mais aclamados e conceituais do mundo e suas canções ainda ressoam fortemente na cabeça de todos. Mesmo com diversos sucessos no disco como Mother, Confortably Numb e Hey You a música com maior impacto no cenário na época - e até hoje – se intitula Another Brick in The Wall.
A música foi dividida em três partes distintas, e o trecho mais famoso é o segundo. Another Brick in The Wall – Parte II, carrega em sua letra a icônica frase “Hey! Teacher! Leave them Kids alone” (Ei! Professor! Deixe as crianças em paz).
Carregada de críticas sobre a educação autoritária, a canção se tornou um símbolo de protesto estudantil contra o ensino totalitário.
Em uma entrevista cedida ao Jornal Folha de S.Paulo, Roger Waters expõe seu pensamento sobre a canção ser símbolo de resistência, “The Wall não é algo construído, inventado. É a minha vida. Sou eu escrevendo sobre meus sentimentos e pensamentos. E, obviamente, tem algumas músicas cativantes. "Another Brick in the Wall" é uma espécie de hino de protesto bacana para jovens estudantes cantarem –ou qualquer pessoa cantar. Na África do Sul, antes do fim do apartheid, garotos negros cantavam isso nas ruas quando estavam recebendo tiros da polícia.”
A música foi capaz de alcançar o 1º lugar das paradas norte-americanas, inglesas e de diversos outros países e, em 1980 ser a 2ª música mais tocada nas rádios do Brasil. A canção teve seu impacto potencializado pelo lançamento do Filme Pink Floyd - The Wall em 1982, dirigido por Alan Parker e com roteiro do próprio Waters.
A sinopse do filme é a seguinte, “As fantasias delirantes do superstar do rock Pink, um homem que enlouquece lentamente em um quarto de hotel em Los Angeles. Queimado no mundo da música, ele só consegue se apresentar no palco com a ajuda de drogas. O filme acompanha o cantor desde sua juventude, mostrando como ele se escondeu do mundo exterior”.
A produção passa por todas as canções do disco The Wall e transformam as letras em visuais psicodélicos cheios de significado. Vale a pena assistir, mesmo para quem não é fã de Pink Floyd. O trecho correspondente à 2ª parte de Another Brick in The Wall foi tão triunfante que depois do lançamento do filme, tivemos o videoclipe da canção que é, literalmente, uma cena do filme reeditada.
E é com a linguagem cinematográfica que vemos Roger Waters mostrando toda sua fúria sobre os regimes educacionais autoritários, em especial ao sistema britânico. Na época do lançamento do álbum, o país tinha eleito a famosa “Dama de Ferro”, Margaret Thatcher para o cargo de Primeira – Ministra, famosa expoente dos pensamentos alinhados com o conservadorismo.
No videoclipe vemos Pink, ainda na infância, sendo reprimido por um professor agressivo e controlador que discorda das poesias escritas pelo menino e o humilha na frente dos colegas.
Não é difícil enquadrar as reações do professor dentro de uma representação bem clara de fascismo. Uma de suas faces, afinal, sempre foi a proibição da liberdade de pensamento.
Ao longo da trama, os alunos são alinhados em uma fileira na intenção de padronizar e coordenar seus movimentos. Além disso, a utilização de máscaras idênticas pelos estudantes e reforça a eliminação da identidade das crianças por um sistema educacional opressor, criando uma conformidade nociva.
Sem dúvidas, a parte mais chocante da produção é o caminhar estudantil para um grande moedor de carne que transforma todos os jovens e seus pensamentos em um projeto igual e padronizado. Carne morta, pronta para ser consumida.
Ao final do vídeo, vemos os estudantes se revoltando contra o mestre e destruindo a sala de aula como forma de libertação.
A canção coloca força na voz estudantil que, aos berros, pede que os professores deixem as crianças em paz e que elas não precisam de educação. Mas não pense que o pedido para a inexistência da educação seja para negar a necessidade das escolas.
O pedido é para que os educadores se afastem e deixem os estudantes terem a liberdade de ser quem são e deixem de tentar controlá-los.
A educação bancária durante o Regime Militar Brasileiro
Trazendo para o cenário nacional, na época do lançamento do álbum The Wall, o Brasil vivia seus últimos anos dentro do Regime Militar (1964-1985).
Fazendo um paralelo com a educação conservadora da Inglaterra que foi tanto questionada por Waters, nosso país vivia uma situação parecida. Aqui o sistema educacional era bancário.
O termo bancário foi desenvolvido pelo educador Paulo Freire, e diz que o professor via seus alunos como “bancos” que recebiam o conhecimento somente na premissa de enriquecer o estudante com conteúdo científico.
Com os temas estudados de forma limitada, os alunos após se formarem, seriam reprodutores das informações sem questionar.
A repressão e opressão do governo militar começou no seu primeiro ano de instauração com o decreto da ilegalidade da UNE (União Nacional dos Estudantes).
A perseguição não foi somente com os estudantes. Educadores também foram censurados na sua linha de pensamento. Aqueles que tinham ideias revolucionárias, abordavam a educação libertadora e incentivava o estudo da área de humanas era expurgado.
Em 1969, duas disciplinas foram eliminadas do currículo escolar: filosofia e sociologia. A razão ficou óbvia para todos, já que são dois temas responsáveis por formar cidadãos críticos, humanos e livres.
O que ia diretamente contra a política educacional militar, que incentivava a formação da mão-de-obra qualificada, nacionalismo e civismo.
História e Geografia também foram censuradas. A aplicação dos conteúdos tinha que ser estritamente factual, menos crítica, com a exaltação bem específica e delineada de determinados personagens.
Another Brick in The Wall não se limita a apresentar a figura do professor como opressor e controlador. Outro trecho do filme retrata a vida particular do educador que, supreendentemente, é oprimido por sua esposa, uma personagem visualmente semelhante à Thatcher.
Paulo Freire, em sua obra “Pedagogia do oprimido”, escreveu que “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”.
A opressão causada pelo professor nos anos de chumbo precisa ser lembrada como reflexo de um governo autoritário que pressionava e ameaçava os educadores. Alguns resistiram, principalmente os mestres universitários, porém muitos tiveram que ceder aos limites impostos para continuarem trabalhando. Alguns, para continuarem vivos.
A educação atual e o vislumbre da liberdade educacional
Nos dias atuais, com a constante presença da internet na educação é possível enxergar algumas mudanças do famoso sistema tradicional de educação.
Não podemos esquecer que muitos professores atuantes hoje foram educados de forma bancária e ainda são propagadores de ensinos tradicionais, acreditando que o professor é o único detentor do saber.
Felizmente, temos mestres que se preocupam em aplicar metodologias educacionais que presam pela individualidade, liberdade e instigam os estudantes de maneiras saudáveis.
Paulo Freire identificou que quando o docente não instiga o pensamento, ele acaba por oprimir os alunos. Quando notamos esse traço no educador, enxergamos não necessariamente uma opressão de forma direta, mas sim a reprodução de opressões que sofreu como estudante.
A pedagoga Aline Mendes diz que “O professor é uma peça da engrenagem. Ele oprime porque está a serviço de um sistema que desconfigura o seu papel fundamental de práticas transformadoras. O professor é sim o opressor, porque ele está a serviço dos interesses do governo e do mercado educacional”.
A percepção para com o coletivo muda através dos tempos em forma de revolução. Sistemas são derrubados, e outros construídos. A visualização de um mundo com menos opressores e mais cidadãos pensantes fica na mão de jovens que partem para a luta com o suporte de educadores engajados.
Aline diz, sobre a participação dos educadores em processos de transformação e libertação: “O professor que tem consciência do seu papel passa a lutar contra o sistema educacional focado no mercado e se volta para a educação libertadora.”
Em um regime totalitário, como representado na canção, a limitação do conhecimento garante o controle do governo sobre o povo – indo na direção contrária do que a democracia defende – No final, nem a própria democracia escapa desse tipo de efeito.
Ainda que estudantes se permitam pensar, o movimento não é erguido sozinho. É necessária uma base educacional formadora que faça a diferença. Se pudéssemos reformular a icônica frase dita aos berros pelos alunos, ela seria assim:
“Então, governo, deixe as crianças, e os professores em paz.”