A História, a Política e a Mitologia por trás do ícone Bob Marley
Eu já li inúmeros livros que tratavam do Rei Salomão e Rainha de Sabá - um reino que abrangia territórios dos atuais Etiópia, Sudão, Arábia e Síria -, sempre desta forma, apenas referindo-se ao seu reino mas sem abordar o nome da soberana, no entanto, ela tem nome, é Rainha Makeda. Reza a tradição que em uma de suas viagens comerciais ela visitou o Estado Hebreu governado pelo Rei Salomão - soberano de 966 a 933 a.C.
O estadista hebreu, encantado com a estonteante beleza negra da Rainha Makeda, a convidou para um banquete em seu palácio e uma noite mais íntima com ele.
Deste encontro resultou um filho, o qual a Rainha Makeda batizou de Davi. Quando adulto ele conquistou a Arca da Aliança de Jerusalém, tornou-se soberano de Sabá e autoproclamou-se Menelik I (o Leão de Judá), considerado o primeiro Negusa Negast (Rei dos Reis), fundador da dinastia salomônica na África. Essa linhagem dinástica governou a Etiópia por séculos.
Essa grande nação africana derrotou o neocolonialismo europeu na Primeira Guerra Ítalo-Etíope (1895-1896), sob a liderança do imperador etíope Menelik II. Na Segunda Guerra Ítalo-Etíope (1935-1936), o exército fascista liderado por Benito Mussolini ocupou temporariamente a Etiópia. No entanto, no decorrer da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), os fascistas foram fragorosamente derrotados pelos etíopes em 1941, sob a liderança de Haile Selassie.
Perante todo esse histórico glorioso e épico de triunfos sobre o colonialismo branco europeu, foi criada toda uma mística em torno da Etiópia e de seu último soberano da dinastia salomônica, o Haile Selassie. Os rastafáris o consideram uma espécie de "Jesus Negro", um Deus encarnado, o messias que guiaria os negros filhos da diáspora para terra prometida na África.
Ao que tudo indica na região da Etiópia, baseados, indubitavelmente, no fato da Etiópia ser o único país africano que nunca foi colônia europeia e seu soberano ser uma proeminente liderança política africana de prestígio internacional.
Esse misticismo em torno de Haile Selassie se deu muito por conta da influência de Marcus Garvey, ativista político negro jamaicano, um dos pais do pan-africanismo, o movimento político que defendia a união de todos os povos negros e/ou a formação de um Estado negro, forjado por um nacionalismo preto.
Garvey é um profeta para os rastafaris, uma espécie de “João Batista Negro”, foi ele quem sinalizou o surgimento de um messias para guiar os negros de volta para a África, a terra prometida, de amor, paz, solidariedade e igualdade entre os povos. Em face de todas as glórias etíopes, sobretudo a sua última, a vitória contra o poderio bélico nazifascista.
Para os rastafáris, esse messias não poderia ser outro negro senão o Haile Selassie. O nome de batismo do imperador era Ras Tafari Makonen, que deu origem ao nome do movimento Rastafári. Ras significa "cabeça'', Tafari é o mesmo que “aquele que é respeitado”.
Embora tenha havido uma resistência heróica do povo etíope sob o comando do imperador Selassie contra o jugo do nazifascismo europeu, a Etiópia imperial era um país extremamente pobre e grande parte da sua população vivia sob um regime semifeudal. Em consequência dessa situação, Haile Selassie foi deposto por uma revolução de cunho socialista em 1974. O ex-imperador veio a falecer de morte natural em 1975.
Mesmo sendo essa figura controversa, Selassie continuou a ser venerado pelos rastafáris. Em 1976, Bob Marley escreveu a letra de “War”, inspirado num eloquente discurso do soberano etíope na Assembleia Geral da Liga das Nações em 1963.
Marcus Garvey exerceu grande influência sobre muitos líderes do movimento negro ao redor do mundo, dentre eles, talvez o mais notório tenha sido o revolucionário estadunidense Malcolm X. Burning Spear, outro ícone do reggae roots, lançou o disco Marcus Garvey em homenagem ao líder pan-africanista jamaicano em 1975.
Até hoje existem negros judeus na Etiópia que arrogam-se descendentes desta dinastia salomônica, são conhecidos como Beta Israel, também chamados pejorativamente de "falashas", palavra que significa “estranho”. Muitos vivem em Israel e são vítimas de racismo. Os Amhara e Tigrai da Etiópia são outros grupos étnicos de origem semita, porém, professam o cristianismo ortodoxo, assim como o imperador etíope.
Marcus Garvey e Haile Selassie continuam sendo até hoje figuras reverenciadas dentro da cultura reggae e rastafári, representados em bandeiras, broches, livros, tatuagens, discos, indumentárias, poesias, músicas, filmes, produção acadêmica etc.
Em 1979, houve um show épico de Bob Marley em Santa Barbara, onde no fundo do palco estão hasteadas duas bandeiras colossais de Garvey e Selassie. Eu não lembro o ano em que assisti a esse show, mas foi quando me interessei em conhecer a história desses dois ícones negros.
Bibliografia:
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Este artigo foi escrito por Célio Roberto e publicado originalmente em Prensa.li.