Humanismo e deficiência - Centro ou empresa de reabilitação?
Eu e muitas outras pessoas com deficiências – congênitas (nascimento) ou adquiridas (acidentes ou outras condições) – sempre estiveram em e precisaram de centros de reabilitação para terem o mínimo de movimentos, para ter uma vida, mais ou menos, normal e ativa.
Muitas tecnologias inovaram na questão da reabilitação ou em construção de aparelhos que possam possibilitar a nós a locomoção, mesmo não andando ou não tendo alguns dos sentidos que, normalmente, se deveria ter em outras condições. A questão vai além; a deficiência não pode ser um empecilho para uma vida feliz e saudável, e a ideia da reabilitação é, exatamente, proporcionar isso.
Mas uma das maiores associações de reabilitação que temos parece que não entendeu a proposta da reabilitação. Colocaram como um ponto que não se deveria colocar e não tem “liberdade” no seu conceito de deficiência, pois inclusão é isso mesmo.
Não há pessoa com deficiência que não tenha feito tratamento nesse centro de reabilitação – eu, por exemplo, por 15 anos da minha vida – que, ao que parece, sequestrou a marca Teleton para si e colocou um CEO para gerenciar a central e seus satélites (que eles chamam de unidades).
Claro, existem coisas positivas como podermos realizar movimentos que não poderíamos realizar, sentar-nos como nos sentamos, comer como comemos e até mesmo, podermos escrever como eu escrevo. Mas, a que custo? A questão toda tem a ver com liberdade.
Quando se fala em inclusão, se fala em liberdade e além da reabilitação do corpo do sujeito com deficiência, também tem a acessibilidade arquitetônica, tecnológica e midiática. Há um conjunto de regras que, se fogem do caminho – método, fogem do propósito e, até mesmo, da reabilitação.
A meu ver, dentro do comando de um centro de reabilitação tem que estar quem entende de deficiência ou convive com deficiência. Antes de tudo, um médico ou alguém do corpo da reabilitação. Isso não é só da AACD (Associação a Assistência das Crianças Deficientes), mas de outros centros que cometem o mesmo erro: por quê colocar gerentes no lugar de quem entende? Rampas erradas, consultas erradas, soluções erradas. Por quê? Não entendem as deficiências e nem como tratar elas. A questão do CEO da tal associação ser um ex-diretor de um hospital do câncer não isenta minha colocação do sintoma contemporâneo de transformar hospitais e centros de reabilitação em empresas.
Então, por que não arrecada dinheiro como uma empresa que é? Por que, no cerne da questão, o Teleton não pode ser usado por outros centros de reabilitação, já que o CEO da AACD disse que a associação luta pela inclusão de todas as pessoas com deficiência?
O grande problema – num modo geral – é querer usar termos que não são da área para dar o glamour de certas coisas. Sem dúvida nenhuma, a AACD foi uma pioneira dentro do tratamento de pessoas com deficiência, graças ao ortopedista Renato Bonfim, isso é inegável. Mesmo que aqui se tenha enraizado – isso foi levado às últimas consequências, deixando pessoas com deficiência com esse tipo de estereotipo – o medicalismo (que até hoje existe, com currículos com laudo médico, quando não se compra cadeiras de rodas sem fisioterapeutas, e tudo ser voltado ao que o médico determina), e o corpo “defeituoso”, que lembra uma máquina.
Antes de colocarem “deficiente” no nome, na AACD, o “D” era de “defeituoso”. Mas àquilo que estava “defeituoso”, a ideia era “consertar”.
Corpos biológicos consertam? Poderíamos agora entrar na seara do Transhumanismo – filosofia que diz ser a tecnologia a grande salvação humana, trocando partes biológicas por partes cibernéticas, igual ao Cyborgue, da Liga da Justiça – onde corpos poderiam ser mudados e, supostamente, melhorados. Fora isso, uma grande utopia.
O que podemos ver são pessoas com deficiência com critérios de perfeição errados – como se algo tivesse a perfeição da mídia e de Hollywood – uma representatividade em alguns casos e em outros não (principalmente, nas empresas e até mesmo, na mídia). Essa representatividade não é colocar ator em filme, mas profissionais em cargos. Muito difícil, por exemplo, ver um cadeirante em uma agência de publicidade ou até mesmo, pessoas com deficiência como CEOs.
O capacitismo nasce do conceito do capaz e incapaz e, muitas vezes, são preconceitos criados a partir do perfeito e imperfeito. A cultura latina – vinda de Roma – chamava as pessoas com deficiência de “monstros”, e várias lendas nascem disso.
No Brasil, o Curupira e o Saci são provas disso. Talvez essa personificação do “defeituoso” como um dilema exposto como um remédio, tenha um critério de fazer desaparecer o corpo que não pertence ao normal. A normalidade pede que as pessoas “defeituosas” sejam consertadas e prossigam colaborando para o progresso. A inclusão, nesse caso, sai de libertar as pessoas com deficiência dessa imagem e lhes coloca uma responsabilidade que não podem cumprir por causa da sua própria origem: o “defeituoso”. Quem quer uma “máquina biológica” com defeito?
O conceito da inclusão perde sua razão de ser (liberdade e igualdade) e se torna um conceito desagregador, a substância narrativa do corpo enquanto “máquina”, e se torna só um termo. Talvez, banalizado. Talvez, esvaziado, pois se confundiu em incluir – como se nascêssemos fora da sociedade – com ser aceito, e ser aceito, requer ser o que somos.
Não interessa se comemos diferente, se andamos diferente, mas sim aceitar o caráter e quem se é. E, mais uma vez, o conceito de “defeituoso” atrapalhou, pois, o corpo tem que se adequar a uma moral que não se usa mais, muitas vezes.
Este artigo foi escrito por Amauri Nolasco Sanches Junior e publicado originalmente em Prensa.li.