I-Doser: ondas sonoras do tinhoso
Que viagem! | Imagem: Milad Fakhourian /Pexels
Então, numa bela tarde descompromissada, você está numa barbearia quando ouve o comentário. Um jovem no Tik Tok diz: “Hoje eu vou ensinar para vocês como ficar ‘locão’ sem droga e sem nada entorpecente, totalmente legalizado. Você só vai precisar de duas coisas: internet e Youtube. É fácil”.
Se você é um adolescente curioso, vai procurar rapidinho o vídeo para aprender a acessar esse portal místico youtuberiano; caso você seja a tia do zap, vai encontrar este vídeo, registrar tudo com riqueza de detalhes, e, claro, transmitir uma mensagem indignada ao maior número de pessoas em suas redes sociais; caso seja uma pessoa que acha que tem angu nesse caroço, vai atrás desta história.
Pois é, me enquadro na terceira categoria. E senti ali o aroma de uma bela reportagem para a Prensa.
O jovem em questão, um influencer chamado Johnathan Bastos (ok, com essa grafia estranha mesmo), desata a falar sobre um aplicativo chamado I-Doser. O rapaz informa que os efeitos só são obtidos quando o conteúdo é ouvido através de fones. Cismei com essa parte, pois já tinha ouvido (sem fones) alguma história parecida. Só não lembrava o quê.
O loiro influencer diz que o aplicativo domina suas ondas cerebrais e é capaz de lhe deixar em estado similar ao do uso de muitas drogas. Muitas, mesmo. Acho que mais um pouquinho, aquele suquinho colorido que era vendido na feira nos anos 1970 e 1980 entraria na lista.
Ondas cerebrais. Parecia muita magia para meu gosto. E eu sabia, há pouco havia lido algo parecido, mas o meu cérebro fazia questão de não me recordar. Estaria eu sobre o efeito alucinógeno desse perverso aplicativo, que segundo a tia do zap, dominava toda a nossa juventude, mais que música da Anitta?
Investigando o mistério!
Ainda antes de sair do salão do barbeiro, saquei o celular e empreendi uma pesquisa. Não encontrei o vídeo em questão, que assisti através do zap do amigo cortador de cabelo. Supus que o tal influencer houvesse removido o conteúdo. Em compensação, achei outras coisas potencialmente danosas.
Como uma palestra transmitida pela TV Creci (ligada ao Conselho Regional de Corretores de Imóveis), onde a neuroengenheira Sandra Regina da Luz Inácio discorre de modo enfático sobre os efeitos do tal aplicativo. Manda ficarmos de olhos abertos com nossos filhos que estariam no quarto ouvindo música com fones de ouvido, mas na verdade estão se drogando! Mas termina com uma informação imprescindível: o tal I-Doser foi criado em 1803.
Pára, pára, pára, como diria João Kléber. Até onde lembro, o primeiro computador do mundo foi criado em 1946. Portanto, um aplicativo criado em 1803 soa um bocadinho deslocado, não é mesmo? Saiba que isso até tem um nome específico, Oopart, abreviação de Out of Place Artifact. Pensei: aí tem. E tinha mesmo.
Via LinkedIn, resolvi descobrir mais sobre a palestrante. Bem, “neuroengenheira” é apenas uma das classificações dela. O currículo cita Pós-Doutorado em Negócios Internacionais, PhD em Administração de Empresas e Psicologia Clínica, Especialista em Estratégias de Marketing em Turismo e Hotelaria, professora, Coordenadora do grupo de Excelência de Empresa Familiar, Coaching no Método CIS… boa parte das graduações e pós-graduações realizadas na Florida Christian University.
Certamente estaríamos frente a uma polímata ou a uma potencial tia do zap. Resolvi descobrir mais sobre essa universidade norte-americana. Com uma sede suntuosa em Orlando, diz ter a “missão de prover educação de alto nível de um modo prático e acessível”. Ok. Já temos a posição oficial. Mas sabe como é, papel e tela aceitam tudo.
Não foi preciso muito esforço para encontrar notícias na Imprensa, datadas ainda de 2020, sobre uma estranha parceria firmada entre o Ministério da Educação, e essa instituição. Segundo reportagem da Folha de São Paulo, em março daquele ano, a Florida Christian é especializada em coaching religioso e já foi acusada de ofertar cursos no mínimo suspeitos no Brasil.
Com um pouco mais de pesquisa recordamos que nesta época o Ministério estava sob o comando de Abraham Weintraub, o mesmo que se pautava por ideologias, escrevia pérolas como “imprecionante” e confundia Franz Kafka com Kafta, além de não ter nenhuma formação ou experiência em políticas educacionais.
Já dava para parar por aí em relação à idoneidade da palestra da “neuroengenheira”. O perfil dela revelava muito mais uma tia do zap (com um visual discutível, se me permite o acinte) do que uma polímata. Pena. Leonardo Da Vinci e Santos Dumont perderam uma colega promissora.
Viagem astral pelo tempo e espaço
Desta feita, resolvi ir atrás do tal aplicativo criado em 1803. Aí caiu a ficha. Nossa quase polímata se referia à data de nascimento do físico alemão Heinrich Wilhelm Dove (na época cidadão prussiano), que em 1839 descobriu uma propriedade sonora batizada por ele como “ondas binaurais”. Era esse o assunto que havia lido ou ouvido falar dias antes!
E o que são as tais ondas? Vamos mergulhar na definição: são ondas de frequência muito baixa, que você não consegue ouvir, como aqueles apitos para chamar cachorro. Segundo as teorias de Dove, você precisa ouvir uma frequência pela orelha esquerda diferente da recebida pela orelha direita. A soma destas frequências criaria uma nova frequência, estimulando regiões específicas do córtex, induzindo a sensações psico-fisiológicas. Algumas aumentariam o poder de concentração, melhorariam o humor, a memória, e algumas poderiam até levar ao orgasmo. Uau!
Quando a esmola é muita, o santo desconfia
Continuei a pesquisa. Você encontra um monte de gente falando sobre isso na internet, e não é exagero. Instagram, YouTube, Twitter, Facebook, e é claro, WhatsApp. Na grande maioria curiosos e novamente, as tias e tios do zap. Descobri também que há um número bastante grande de aplicativos disponíveis que trabalham estas frequências, além do I-Doser. É basicamente uma subcategoria, chamada brain wave therapy.
Caso do Binaural Beats, que assim como seu primo “famoso” também manipula as ondas theta, gamma, delta, alpha e mais um monte de letras gregas. O Binaural Beats tem presets para estímulo de foco, estudo, memória, sono, intuição, euforia e… viagem astral.
Resolvi me embrenhar nessa mata sem fim, e baixei esse treco. Se me ajudar a manter o foco, já vale a pena. Relato aqui minha experiência, e gostaria que acompanhassem essa viagem (quase astral) com muita atenção.
Ao acionar o módulo para “estudo”, por exemplo, a primeira coisa que vemos é um comercial do Cartão Visa, que agora também pode ser utilizado para criptomoedas. Obrigado pela informação. Em seguida, ouvimos a música Gazing Far. O gênero é o que chamávamos lá nos anos 1980 de new age music.
Ouvi por alguns minutos. Como não me deu vontade de estudar, mudei para “euforia”. Mais new age music. Uma flautinha dos índios apache, entremeada com passarinhos e água corrente. Não fiquei exatamente eufórico, mas com vontade iminente de ir ao banheiro por causa daquele riachinho.
Problema resolvido, radicalizei. Viagem astral. Outra bela peça de new age music. Tentei criatividade. Inteligência. Relaxamento. Terceiro Olho. Sono. Tudo mais do mesmo. E pode ser que meu celular esteja com defeito, porque só esse último funcionou. Sono. Uma playlist de new age num streaming qualquer faria o mesmo efeito.
No covil do monstro
Pra quem tá no inferno, só resta abraçar o capeta. Decidi ir ao cerne desta história. O tal do I-Doser. Conhecer aquele que desvia nossos filhos, netos, sobrinhos, e possivelmente distribuídos digitalmente pelo pipoqueiro da esquina.
Criado por Nick Ashton e lançado no mercado em 25 de dezembro de 2005, é anterior aos próprios smartphones. Do tempo onde o termo aplicativo não existia. Falávamos em softwares ou programas. Na idade do byte lascado. Não chega a ser um Oopart como a nossa quase polímata sugeriu, mas deveria ser usado em relíquias como o WinAmp.
Muito malandramente, o tal aplicativo (disponível para Android, iOS, Mac, Windows e se deixar, em breve para geladeiras e microondas) faz o marketing todo em cima dessa polêmica. Esqueci de dizer, também ocorre lá fora, geralmente mobilizado por grupos conservadores e cristãos, equivalente às tias do zap verde e amarelas.
As “doses” são todas vendidas. Tem de tudo. Até o “segredo militar para cair no sono em dois minutos” e “autotranscendência e o processo de morte do ego pessoal”. Título perfeito para uma palestra, não seria?
Grátis mesmo, só um tutorial para calibração dos seus fones de ouvido em baixas e altas frequências, coisa que qualquer técnico de som sabe fazer; a sensação mais comum é incômodo.
Cabe afirmar que parte das altas frequências passam por sons similares ao motorzinho do dentista, e até onde lembro nunca saí doidão ao tratar uma cárie ou fazer uma limpeza.
Bom, as músicas no I-Doser, ao menos nessa calibração, são mais animadinhas. Mas são isso mesmo: músicas. Mais contemporâneas que toda aquela festa new age do Binaural Beats.
Clientes felizes
Ainda assim, há depoimentos de usuários no site. Um tal “Peter”, que fez uso da versão Trip Dose diz ter visto “cores e padrões” que depois do uso ainda ficaram saltando perto dele durante uns quinze minutos. “Maurice”, usuário da Green Dose, afirma ter ficado calminho e não vê a hora de usar outra vez.
Muito mais com jeitão de marketing, outra página do site mostra que o aplicativo pode oferecer sensações similares ao consumo de LSD, maconha, Ecstasy, sonhos lúcidos e, olha lá ele de novo, o orgasmo. Freud explica. Outro diz simular os efeitos do sildenafil. Sim, o “remedinho azul”, comumente associado àquela sensação anterior. Bizarro.
Conspiração conspiratória
Resumo da ópera (ou do concerto new age, fica por sua conta): resolvi pesquisar fontes mais confiáveis, ou seja, médicos, neurologistas, psiquiatras, gente que entende do assunto de verdade.
Ondas binaurais atingem seu cérebro? Sim. Elas podem lhe causar alguma sensação incomum? Podem, mas depende muito (e quase exclusivamente) do poder de auto-sugestão do usuário.
Basicamente, é um placebo sonoro. E não me refiro à banda inglesa dos anos 1990. Você sente se quiser sentir. E isso funciona tanto com softwares possuídos pelo demo, segundo a tia do zap, quanto com qualquer outra música ou som. Depende da sua auto-sugestão, concentração, foco e criatividade. Por curiosidade, parte das sensações que estes aplicativos dizem emular.
Em outras palavras, é apenas um boato. Não precisa se preocupar. O tal I-Doser e seus genéricos não são ainda a arma definitiva dos Illuminati, financiada por Bill Gates, que visa a dominação planetária (da Terra Plana) pelos reptilianos comandados por Ashtar Sheran.
É apenas música. Chata, na maioria das vezes.
Este artigo foi escrito por Arthur Ankerkrone e publicado originalmente em Prensa.li.