IA escritora, a criatividade sem sensibilidade
Há uma relação entre criatividade e sensibilidade; há uma relação entre sensibilidade e escrita. Nesse cenário, é possível dizer que há relação entre criatividade e escrita. A neuropsicologia prediz que sensibilidade é produto da interatividade dos neurônios. Isso leva a uma questão: IA escritora é possível?
A arte de escrever é antiga, como se sabe. O processo de comunicação não oral teve início com os desenhos rupestres - alguns com mais de 40 mil anos. A escrita interpessoal, propriamente dita, remonta da época dos Sumérios, 3500 antes da era comum, por meio da escrita cuneiforme.
Ao longo do desenvolvimento das relações entre cérebro, sociedade e realidade, a escrita foi ganhando formas, com estilos, gêneros e outros parâmetros. Então, nascem outras duas questões: um relatório técnico é produto de sensibilidade? Quem tem direito à propriedade intelectual sobre o trabalho de IA escritora?
A filosofia alega que um chimpanzé sentado diante de um computador teclando aleatoriamente por mil anos é capaz de produzir um best seller. Seria esse o princípio mecânico da IA escritora?
IA escritora, a escrita mecânica
Chris Tweten é diretor de marketing da empresa canadense Spacebar Collective, especializada em estudos referentes às estratégias SEO. Ele publicou recentemente um longo estudo sobre redatores apoiados por IA estarem alterando parâmetros de classificação de textos nos mecanismos de busca.
Parte deste artigo tem aquele estudo como base; outra parte se baseia na percepção de vários profissionais de marketing contatados.
Os mecanismos de busca virtuais criaram comportamentos dos mais surpreendentes. Desde questionar ao Google “como usar o Google” à publicação de vídeos de mulheres perguntando se elas mesmas estão grávidas. Outros exemplos:
Quero saber se soltar gases queima calorias
Preciso chegar em casa
Me diga quando eu vou morrer
Os aliens são reais?
Talvez o comportamento mais intrínseco aos próprios mecanismos de buscas tenha sido criado “coincidentemente” por eles mesmos. É admirável o desespero de profissionais de marketing por alcançar a primeira opção da primeira página de resultados. Para isso, foi preciso desenvolver estratégias.
IA escritora e o SEO
Estratégias SEO são conhecidas por qualquer profissional de marketing digital. São também muito conhecidas por criadores de conteúdo virtual, seja textual, visual ou por áudio. Trata-se de técnicas que, em princípio, disputam o “consumidor final”: o internauta. Vão de:
preservação da atenção do internauta
manutenção ou aumento da força de venda de produtos ou serviços
aumento na frequência de visitas
conservação do tempo de estada do internauta em sites
São técnicas tão interiorizadas na concepção de conteúdo que o internauta nem sequer percebe. Essa interiorização, isto é, a forma sutil como as técnicas são aplicadas, é quase uma “engenharia social”. Só não são consideradas engenharia porque esse conceito é usado para classificar golpes de estelionatários na internet.
Bem, “engenharia social” é termo usado para definir ações de criminosos. Trata-se de técnicas que induzem um usuário de tecnologia a “abrir o cofre de informações pessoais” sem que saiba.
Aliás, a Prensa está preparando um artigo interessante sobre como os hackers têm usado as estratégias SEO. Convém aguardar pela leitura.
E a articulista deste site, Miriã Marconi, escreveu sobre inteligência artifical com argumentos bem interessantes: O rumo da Inteligência Artificial: a arte imita a vida, ou seria o inverso? . Também recentemente, Marcelino Costa falou sobre o assunto no artigo Inteligência Artificial | 100% Humanos?. São matérias bem legais.
A heurística
Os métodos heurísticos em si são diferentes da “heurística computacional”. A primeira se refere à “técnica de pensamento e comportamento praticamente automática nos humanos que ajuda a encontrar respostas”. Em informática, é “método de investigação baseado na aproximação progressiva de um dado problema”.
A produção textual pura e simples é atividade que pode ser mecânica, automática. Muitos sites que exploram o dia a dia de celebridades lançam mão desse tipo de atividade. Contudo, produção textual de qualidade precisa de sensibilidade, de conhecimento prévio do tema e, especialmente, da análise cognitiva dos fatos.
Afinal, aliada ou rival?
É certo que produção textual por IA tem avançado consideravelmente de alguns anos para cá. Entretanto, até pouco tempo, a qualidade dos textos criados era medíocre. Não tinha força para fazer frente à produção humana.
Havia, assim, uma série de empecilhos que mantinha a IA na categoria de “tentativas”. Por outro lado, o lançamento de ferramentas quase exclusivas para produção de redação pode acender sinal de alerta. Afinal, a velocidade de “criação” da IA é logicamente incomparável. E os custos também.
Assim, os humanos rebuscam termos adequados em seu cérebro. Isso pode consumir tempo e ser estressante. Quanto às máquinas, átimos de segundos são suficientes para compor frases compreensíveis.
Veja: compreensíveis, não necessariamente adequadas.
O outro lado
Por outro lado, copywriters práticos estão tornando a IA uma aliada. Sim; isso é possível.
O canadense Tweten vê bom futuro nessa relação:
Vejo um futuro em que as ferramentas de redação de IA aumentarão drasticamente a produtividade e, eventualmente, a qualidade dos redatores – mas o surgimento de tais ferramentas também aumentará a demanda por escritores e editores humanos qualificados.
Alguns estudos mostram que escritores experientes constroem bons textos com 2 mil palavras por dia. Se auxiliados por IA escritora, essa quantidade sobe para 4, 5, 6 mil. Certamente, é colaboração considerável.
Além disso, os não experientes podem usar a IA escritora como meio de aprendizagem. Isso também é excelente colaboração.
Resultados podem ser afetados
O GPT-3 é um sistema idealizado e realizado pela OpenAI, espécie de ONG de estudos referentes à IA amigável. A sede fica em San Francisco, California, e seus fundadores principais são Elon Musk e Sam Altman. Com pouco menos de uma década, tem revolucionado o tema “Inteligência Artificial”.
O GPT-3 usa o chamado machine learning (aprendizado de máquinas) para se instruir. É capaz de gerar tipos variados de textos. Sua capacidade de processamento é inacreditável.
O fato é que, quase sempre, a velocidade na produção de textos é fator de desqualificação de trabalho. É certo, contudo, que as máquinas são capazes de encontrar trechos de artigos claramente associados ao tema que procuram.
Por outro lado, essa associação não detém a sensibilidade cognitiva que se encontra em textos bem feitos. Assim, ainda que os resultados se mostrem adequados, o alcance do sentido de uma frase é sempre indistinguível - até mesmo para escritores humanos.
Afinal, como disse Pablo Neruda:
Escrever é fácil. Você começa com uma letra maiúscula e termina com um ponto final. No meio você coloca ideias.
Ainda não confiável
Talvez esse seja um eterno entrave para IA escritora: ideias.
Isto é, o problema é ter segurança sobre o perfil das associações de ideias que a IA escritora aplica nos enredos. Esse pensamento está contido na ideia de José Saramago:
Somos todos escritores, só que alguns escrevem, outros não.
Com isso, o escritor português pretendeu dizer que ter ideias é para todos; expô-las coerentemente é para poucos.
Qualidade em dúvida
É importante destacar uma percepção controversa por parte dos entrevistados para este artigo. Muitos consideram que uma quantidade considerável de conteúdo produzido por IA escritora não tem qualidade. Está longe de ser uma atividade minimamente razoável.
Outros, no entanto, observam que a ferramenta é relativamente nova. Portanto, tudo está muito no início. Além disso, a velocidade com a qual a IA escritora “aprende por si mesma” é impressionante, fator preponderante para se imaginar que a questão da qualidade vai ser ajustada muito em breve.
Nesse horizonte, o consenso entre os entrevistados para a produção deste artigo é animador. Pelo menos para os redatores: “IA escritora não substitui humanos na produção textual”. Até onde se percebe, nunca vai substituir.
IA escritora pode ser usada como auxiliar, como fonte de sugestões, até como incentivo. Contudo, não dispõe do item básico mencionado no início: sensibilidade. Mesmo relatórios técnicos, textos acadêmicos, enredos descritivos etc. precisam de alguma base de lógica emocional.
Cuspidoras de textos
Tudo do que a IA escritora necessita é uma frase inicial e o estilo de escrita. A partir de então, ela aciona seu sistema de assimilação sob sua rede neural. São quase 500 bilhões de tokens codificados por pares de bytes em mais de 175 bilhões de parâmetros de aprendizado de máquina.
De certa maneira, isso também acontece com escritores humanos. O mercado editorial está cheio de grandes vendedores de livros que usam equipes numerosas para produzir seus textos. Cada membro cria trechos ou capítulos, cuspindo conceitos e ideias para depois serem adaptadas ao contexto geral.
Dessa maneira, cada membro da equipe usa de seus bilhões de sinapses para produzir frases. Considerando que a equipe é grande, chega-se à quantidade maior de "tockes" que quantidade da IA.
Oportunistas de plantão
Assim, na onda da IA escritora, uma série infindável de aplicativos de copywriting automatizados jura que produz textos bem qualificados. Na mesma onda, milhares de produtores de conteúdo ao redor do mundo têm usado a IA escritora como ponto de apoio.
A estratégia é simples: criam uma frase de start e acionam o botão. Depois que a IA escritora produz o texto, simplesmente adaptam ou mesmo apenas corrigem eventuais deslizes.
Assim, técnica e praticamente, não contrariam leis ou regras - mesmo porque elas ainda não existem.
Mas seria moralmente aceitável?
É pergunta ainda sem resposta para quem usa esse artifício. Contudo, quem gosta de escrever, quem sente prazer em informar, quem reconhece o próprio papel na produção de conteúdo tem a resposta na ponta da língua - ou da caneta:
Não, não é moralmente aceitável.
Contra-ataque do Google
O próprio Google tem se debruçado sobre suas pranchetas para identificar e penalizar conteúdos automáticos ou mesmo híbridos. Não tem tido muito sucesso, mas continua tentando.
Afinal, redatores estão ganhando dinheiro fácil com essa estratégia. E, segundo muitos dos que a utilizam:
o Google quer facilidades somente para si mesmo.
O site da revista Forbes publicou matéria interessante sobre isso em março deste ano. Nela, um executivo do alto escalão do Google afirma que as empresas não devem substituir os conteudistas humanos por IA. Pelo menos por enquanto.
Ainda: a baixa qualidade dos textos gerados por IA é evidente. Isso certamente há de ser instrumento de avaliação dos mecanismos de busca em breve. Portanto, não parece ser boa ideia.
Essa visão está baseada em muitas postagens em mídia social levantadas por Barry Schwartz, da Search Engine Roundtable.
Riscos financeiros não imediatos
Nesse cenário, a IA escritora não se apresenta (ainda) como solução para diminuir gastos das empresas com redatores. Em 2020, elas gastaram mais de 47 bilhões de dólares com produção textual humana, segundo a The Business Research Company.
Portanto, ainda que haja custos, a má qualidade da produção da IA pode significar gastos maiores ao longo do tempo.
O blogueiro profissional Meer Basit trocou postagens no Twitter com um dos advogados do Google, John Mu. A questão girou em torno da capacidade do Google de identificar textos automáticos. A resposta foi surpreendente:
Até onde eu sei, a maioria dos sites tem problemas para criar conteúdo de alta qualidade; eles não precisam de ajuda para criar conteúdo de baixa qualidade.
Recentemente, diversos sites especializados em Tecnologia da Informação e Comunicação vêm alertando conteudistas mundo afora. O Search Engine Journal foi um deles. Chegou a publicar chamada comunicando que uso de IA escritora é contrário às diretrizes de boas práticas da gigante da internet.
Por outro lado, ninguém é capaz de afirmar que o Google tem penalizado ou vai penalizar quem usa o artifício.
Pelo menos por enquanto.
Este artigo foi escrito por Serg Smigg e publicado originalmente em Prensa.li.