Ignorância não é sua melhor amiga
Em uma das muitas cenas marcantes do filme Batman Begins, Flass, um policial corrupto diz que "a ignorância é uma benção” referindo-se a não saber muito sobre o esquema de tráfico de drogas do qual faz parte. Incentivando os demais a adotarem a mesma conduta, ele tratou o conhecimento como algo danoso.
De forma um pouco mais crítica, temos a música da banda Paramore, Ignorance. Que afirma que “ignorância é sua nova melhor amiga” ou até mesmo o Thiago Iorc no longínquo ano de 2017 compôs sobre os males da ignorância:
“A gente queima todo dia
Mil bibliotecas de Alexandria
A gente teima, antes temia
Já não sabe o que sabia”
Nem precisa saber o que foi a biblioteca de Alexandria (embora seja algo muito legal) para perceber que tacar fogo em livros é uma péssima ideia, típica de grupos totalitários. Em algum ponto — ao qual eu definitivamente não tenho capacidade para precisar — virou uma chave em algum lugar e a sociedade ocidental passou a acreditar que “minha ignorância vale tanto quanto o seu conhecimento”.
O túnel no fim da luz
Talvez nem seja algo tão novo assim, afinal antes do iluminismo... bem… Iluminar a idade das trevas, superstições e suposições reinavam absolutas.
Suspeito que a questão é que antes os idiotas eram idiotas privados, cada um falando abobrinha na sua casinha. Agora eles se aglomeram nas redes e nas ruas, elegendo líderes para seus grupos e para a população como um todo.
“Navegar é preciso”, mas de preferência leve uma bússola, um sextante e uma dose de bom senso. (arte de Carlos Ruas / umsabadoqualquer.com)
No fim dos anos 90, um energúmeno que passou pela faculdade de medicina, publicou um estudo baseado em achismos e num número limitadíssimo de “pacientes”, no qual afirmou que vacinas causariam algo que prefiro nem mencionar aqui pra não dar corda pra maluco*.
20 anos depois voltamos a ter crianças morrendo de sarampo e catapora, doenças que foram consideradas extintas no Brasil e voltaram a matar no país por conta de pais (que receberam vacinas na infância) recusando-se a vacinarem seus filhos.
Como desgraça pouca é bobagem, a pandemia do Covid-19 chegou e já levou mais de 600 mil brasileiros (em estimativas conservadoras). As principais razões? A insistência do inominável que ocupa a cadeira da presidência em insolúveis soluções que não funcionam e o descrédito com o qual seus afiliados tratam a vacina.
O Brasil já foi exemplo mundial de vacinação infantil. As mentiras espalhadas ao longo da última década sobre o papel e o efeito das vacinas propiciaram uma tempestade perfeita na qual temos uma parcela considerável da população que se recusa a vacinar contra um vírus letal.
Inteligência ficou cega de tanta informação
No já referido período medieval, educação era um privilégio de parte da elite. Hoje, apesar dos esforços e opiniões de ministros que acreditam ter gente demais nas faculdades, quase toda a população teve acesso a algum nível de educação formal. Então o que explica tamanha ignorância?
Focaram e se esforçaram tanto em aprender uma coisa, mas aceitaram qualquer informação de outra área como verdadeira. (arte de Raphael Salimena)
Seguindo o raciocínio da tirinha, só faltou um doutor em geografia falando que bandido bom é bandido morto, desde que esse bandido seja pobre, marginalizado e não tenha roubado milhões dos cofres públicos, é claro.
No filme Ensaio Sobre a Cegueira, baseado na obra do renomado autor Saramago (ao qual eu não li, apenas vi o filme, perdoe minha falha) é abordada a gigantesca quantidade de informações que recebemos diariamente e a qual não conseguimos processar e assimilar.
Mesmo focando em aprender sobre um assunto, uma área específica, existem muitas pessoas que aceitam qualquer informação sem raciocinarem a respeito. Não tiram dois minutos para ponderar se tal coisa faz sentido, por pura preguiça, por pura conveniência; seja essa informação transmitida por um especialista ou por um desconhecido em um grupo de Whatsapp.
Contra a ignorância…
Na mitologia hindu, em algum momento, a deusa Shiva — uma das mais poderosas deidades deste panteão — usa um tridente chamado Trishula para lutar contra a ignorância da humanidade. Pelo visto, Shiva perdeu..
Inspirada ou não por essa história, temos também a célebre frase do pensador Friedrich Schiller, que afirmou no século 18:
“Contra a ignorância, os próprios deuses lutam em vão!”
É dessa frase que Asimov tirou o título do livro "Os Próprios Deuses" de 1972. Uma magnífica obra (essa sim eu li) na qual um cientista tenta encontrar uma nova fonte de energia para salvar a humanidade de um colapso.
No fim, e desde o princípio, parece que a humanidade é mesmo ignorante e gosta de ser assim. Ainda que seja uma batalha perdida, ainda que seja mais fácil acabar com os conflitos armados espalhados pelo mundo do que erradicar a ignorância do mundo, devemos fazer a nossa parte pelos valores da lógica e os bons conhecimentos.
Este artigo foi escrito por Gustavo Borges e publicado originalmente em Prensa.li.