Iguais, parecidos e diferentes
“A diversidade somos todos nós”.
Edgar Morin
O que nos faz iguais não me parece algo tão simples de ser explicado nem por meio da língua pontual e cronometrada, nem por meio da língua nascida no improviso. Antes que eu me irrite por não encontrar resposta imediata, vou editar a apresentação, porque talvez não caiba aqui tudo o que eu deveria escrever.
Busco leveza e hoje a música traduz muito do que soul e não poderiam ficar de fora Tim Maia, Lulu Santos, Adriana Calcanhotto e Flávio Venturini, mas também meu papel aceita estrangeirismos de toda ordem, então, trago Eros Ramazzotti, Alejandro Sanz, Tiziano Ferro e Mike Francis. [Observação: não sou fumante e, nisto, sou parecida com muita gente].
Algumas vezes, pareço-me até comigo mesma e escrever um texto de apresentação pode ser algo volátil. [Que seja eterna enquanto dure a imutabilidade].
Se se acredita que a mutabilidade é condição sine qua non para todos e todas nós, o que nos torna iguais? Pensar o que nos faz iguais provoca a corrosão dos fios que ainda nos resta, mas se é esta a ideia, tudo bem. Neste caso, é mais fácil dizer que somos parecidos. Dá-nos uma folga para pensarmos com mais calma o ponto de interseção que nos iguala. Enquanto isso, vestimos a roupa para o enfrentamento do cotidiano.
A roupa nos protege de arranhões ao corpo físico, não importa o valor da mesma. Um dos segredos do homem para não perder o bom humor ao usar terno e gravata em um calor de quarenta graus é improvisar uma alegria gratuita por se sentir protegido e saber que a sobrevivência é coisa certa.
Nesse contexto, tem condições de garantir uma fatia dos recursos nas discussões que polarizam os iguais, os parecidos e os diferentes. Há os que usam terno e gravata, há os que preferem o tradicional, há os que nada usam. As bolsas de valores também não são iguais. Bolsas e valores também não, que o diga as mulheres.
Mulheres também usam terno, mas a sobrevivência que almejam é em relação ao sexo oposto. Elas são percebidas no mundo do trabalho, mas não recebem o mesmo salário de um homem que desempenha funções semelhantes a elas. Nisto são diferentes. No entanto, todos convivem democraticamente: homens, mulheres, ternos e bolsas.
Seria a diversidade o elemento que nos faz iguais? Em caso afirmativo, arrisco escrever que a polarização entre as três categorias pode não existir. Curada a fratura exposta por meio do diálogo, fica o alívio. A diversidade, neste caso, torna possível a nossa existência enquanto comunidade e o respeito por todas as formas de absorção do mundo. A diversidade caracteriza também a arte. É um alívio saber que nem todos gostam somente de cinema alemão ou italiano e de Paul Klee.
Observo Youth e vejo atmosferas que cercam, com toda delicadeza, o futuro cheio de memórias da jovem imersa no tempo presente, cheio de profundidade. Nada me parece mais democrático do que a arte. Ela nos dá o direito de escolha. Eu decido escolher como interpretar René Magritte. O filho do homem vê a maçã verde e não conhece as consequências das próprias ações. Eis a sua incompletude.
O especialista em sustentabilidade Ricardo Voltolini disse-me que estou entre setenta e nove milhões de veganos no mundo, embora eu não seja. Continuaremos a ter alimentos e muitos dirão que nada têm a ver com isto, ainda que todos estejam inclusos na agenda.
Pintou um clima no filme italiano e a crise climática afeta a vida dos que assinaram o Acordo de Paris e a da maioria dos meus leitores. A disputa por água já é prevista e tal questão nos torna iguais. Os humanos que moram no Brooklyn bebem água. Os que não moram também. Os que oram e os que choram bebem água e a cidadania coletiva é lembrada nos textos longínquos de colegas iniciantes e consagrados na escrita.
Em caso de escassez de água, todos os humanos se igualam e todos os escritores também. Todos os escritores são parecidos: gostam de invadir o território digital com lutas que envolvem todos e todas na mesma situação quando o sentimento de finitude bate à porta.
Sem água, a vida começa a morrer. Somos iguais também porque morremos, mas não da mesma forma e isto nos diferencia. Há quem morreu e não sabe; há os que morrem em hábitos diários, à mesa do café ou antes de ir para o trabalho; tem gente que anuncia a própria morte porque administrou mal o ato de viver; há os que morrem antes de crescer ou antes de nascer.
Mesmo quem pagou os boletos antes do vencimento morre e a vida continua. A foto síntese fica à mesa do escritório e é observada carinhosamente por alguém da família, mesmo após a leitura do testamento.
A nossa casa pode ser a mesma, mas os que a habitam geram ruídos diferentes, por não serem iguais, e morrem, seja às 19h54min do domingo ou 11h35min da segunda-feira. Os diferentes são facilmente identificáveis, basta ver a reação diante de cobranças indevidas. Alguns pagarão a conta dos outros logo pela manhã, sem maiores questionamentos; outros querem entender por que são cobrados se as relações são mútuas e os erros recíprocos.
Sou mutável - digitei às 11h10min no dia da final da Copa do Mundo de dois mil e vinte e dois. Notebook devidamente instalado para receber as mutabilidades nascidas às 2h45min, pois o dia anterior aproveitou-se de minha tolerância e se prolongou mais um pouco.
Letras esparsas em átomos e reconhecer minha condição me dá subsídios para colocar no papel mais de um milhão de conectivos, pois tudo está ligado, repetiu inúmeras vezes o filósofo francês Edgar Morin. Estão ligados os iguais, os parecidos e os diferentes.
Aos indiferentes também cabe um pedaço de chão neste latifúndio, mas preciso de um prazo considerável para estudá-los. Encontrarei um tempo para os indiferentes em minha agenda. Eles merecem todo o meu respeito. Não quero que fiquem apenas na lembrança de meus contemporâneos. Desejo que transcendam o tempo, assim como nós.
Sejam os indiferentes abençoados em cada um de seus fracassos. Algo nos indiferentes nos chama à atenção. Se latem, não lhes recusamos comida, nem água. Não demora e nos apegamos a eles. Ganham-nos de mansinho. Os erros dos indiferentes me parecem uma espécie de jogo sobre o qual não temos domínio. Sigamos sorrindo. Algo de bom nos espera.
*
Janeiro de 2023. Quase todos cumpriram as convenções do dia inicial do mês e vestiram branco. Máscaras desmontadas. Sintam-se lembrados. Sem uma resposta única, penso: o que nos faz iguais é esse desejo de escapar da língua alheia pelas próprias pernas. O corpo sempre fala mais alto. A isto chamo autonomia.
Ontem fui visitada por uma vontade enorme de jogar fora um pouco de mim. Em meio a documentos dobrados e folhas amarelas com assinaturas e valores pagos, não hesitei. Joguei boa parte. Em uma única sacola, impressões minhas e dos outros me causaram alívio quando a moça do caminhão chegou. É a conhecida limpeza de final de ano, onde nos livramos do que já não nos cabe ou nunca foi nosso: acordos, desacordos e algumas contas pagas sem maiores questionamentos.
Não busquei entender por que fui cobrada. Certas coisas nos dão trabalho e não valem a pena o tempo gasto. Melhor dar adeus a tudo aquilo sem lamentos e voltar à “estaca zero”. Prefiro o conceito de tempo investido. Gosto de me sentir igual aos outros quando a palavra é recomeço.
Este artigo foi escrito por Rosa Acassia Luizari e publicado originalmente em Prensa.li.