Imageboards na fronteira sem lei da Deep Web
No filme “O Planeta Proibido” (1956), uma missão de resgate tenta localizar os membros da expedição Belerofonte (nome do herói grego que derrotou o mostro Quimera). Os componentes da missão são atacados pela mesma força invisível e mortal que dizimou a expedição. Por mais que se defendesse, o ser atravessava as linhas de contenção e atacava. É um clássico da ficção científica.
Quem não viu ainda poderá assistir à atuação de um jovem Leslie Nielsen (1926-2010) da franquia “Corra que a Polícia Vem Aí”. Creio poder resumir o filme, sem ser acusado de dar spoiler. Afinal, é muito velho.
Os monstros do planeta não eram criaturas autônomas e, sim, uma criação mental dos próprios seres humanos presentes. Foram chamados de “monstros do Id”, em referência à teoria psicanalítica (Id, Ego e Superego) de Sigmund Freud. Segundo essa teoria, o Id nasce conosco; é irracional, impulsivo e desconhece inibição de qualquer tipo: juízo, lógica, valores, moralidade. Responsável pelas pulsões primitivas, chega a ser considerado perverso.
A explicação encontrada pelos personagens estava na tecnologia deixada pelos antigos e extintos habitantes do planeta. Máquinas davam matéria e força aos aspectos perversos do Id que atacava todos a sua volta. A solução foi destruir essa tecnologia.
O filme diz muito sobre como podemos ser internamente mesmo inconscientemente, e como é destrutivo canalizar certas tendências para o mundo exterior. Não temos máquinas como as que são descritas no filme. Mas na falta delas temos a internet. Há vários meios na internet nos quais se pode dar vazão aos instintos primitivos, inclusive pelas redes sociais da surface web. Entretanto, mesmo perfis falsos podem ser mais facilmente rastreados no Facebook, Instagram e Twitter.
Deep in the Dark
A Deep Web oferece um anonimato mais seguro. A Dark Web, que é uma parte da primeira, dá ainda mais cobertura a quem quer delinquir com anonimato garantido, aparentemente. Há que se observar que nem tudo na Deep Web é ilegal. Por razões pessoais, financeiras, econômicas ou segurança, informações legais transitam por lá. Muitos jornalistas se comunicam por este meio com suas agências, normalmente correspondentes internacionais trabalhando em países como a Síria, Líbia ou Irã.
O que torna o acesso mais difícil após a surface web são paywalls, logins e a falta de indexação dos sites nos mecanismos de busca tradicionais (web crawlers). Estima-se que 96% do conteúdo da rede esteja nas áreas mais profundas.
Há inclusive a notícia de que a Primavera Árabe não teria sido possível sem a Deep Web. É compreensível, pois a articulação para o movimento ocorreu por dentro de ditaduras violentas. Se não podemos condenar a Deep Web, seria um erro também a tomar por inocente. Além de farto material impróprio, é arriscado navegar por lá.
Mais sombria que a Deep Web é a sua spin-off conhecida por Dark Web. Como na primeira é necessário um software específico como o TOR, um acrônimo para The Onion Router (em português, roteador cebola) para entrar nas zonas mais profundas. Há também o Onion Browser.
Na rede TOR, os dados são encriptados sucessivamente, incluindo o endereço do IP do próximo nó ou nodos, que são pontos de conexão (distribuição ou comunicação).
Não são locais virtuais onde se acham sites com o design que estamos acostumados. Percebe-se não haver uma preocupação estética com os elementos textuais e gráficos. Chegam a ser grosseiros. Encontra-se sites com jogos, filmes e músicas como também conteúdo ilícito, como armas e drogas. Para além disso, quem procurar vai encontrar coisas piores. Melhor evitar.
Imageboards
E nesse contexto entram os fóruns conhecidos como chans, encontrados também na surface web. O design deles lembra os das antigas BBS, mas aprimorado. Anônimos falam de tudo, expõem suas ideias mais bizarras, teorias da conspiração, declarações criminosas, racistas e toda a ideologia que o bom senso – e a lei - repugna.
Os imageboards já se envolvem com negócios ilícitos na web mais acessível. Recentemente, o 1500chan, considerado o mais ativo, foi denunciado por ameaças a jornalistas e oferecimento de serviços para produção de fake news. Estava inclusive indexado nos crawlers, mas se ocultou após reveladas suas controversas atividades. Popular também é o 4 chan, também na surface web. Como na deep web é mais fácil preservar o anonimato, nada anormal encontrar toda a sorte de atividades ilegais e de promoção ao ódio.
Incluem-se nessa última atividade os incels. São homens com problemas de relacionamento e fazem dos fóruns sua válvula de escape para as próprias frustrações e baixa auto-estima, com declarações agressivas e misóginas. Incels vem de involuntary celibates (celibatários involuntários). Promotores do ódio extremistas nos chans são relacionados pelas investigações de órgãos de segurança com os ataques de Realengo (2011), Utøya (2011), Toronto (2018) e Suzano (2019).
Então não são apenas antissociais trocando mensagens. Há impactos no mundo real e não apenas nos mencionados ataques. Todo o tipo de crime pode ser perpetrado, desde tráfico de drogas e armas até lavagem de bitcoins. Sem falar em toda a sorte de sites onde se oferece de tudo, incluindo dados pessoais.
É importante expor o que ocorre nesses fóruns e em outras zonas ocultas da web. Mais importante ainda é combater. Não é possível dizer que todos os fóruns são catalizadores de ódio e práticas criminosas; não são sempre espaço de atividades ofensivas. A criação dos chans começou como algo inocente, no Japão, para discutir animes e mangás, há 21 anos. Porém o anonimato estimula os channers a libertar os “monstros do Id”, que são alimentados numa simbiose tóxica.
Depois de Suzano, os fóruns entraram definitivamente na linha de investigação da Polícia Federal e Ministério Público. Ainda assim, há pouco material conhecido sobre esses grupos.
Não podemos mais tratar a deep web e a dark web como planetas distantes, reduto de hackers e desajustados. Há criminosos e golpistas transitando livremente numa área virtual quase 10 vezes o tamanho da internet nossa de cada dia.
Aparentemente, estamos perdendo. Não há como impedir o funcionamento da bergie web, nem obrigar todos os seus usuários a se identificarem. Não existe a possibilidade de desligá-la da tomada ou explodi-la. Nem se deve. A livre circulação de ideias, o uso profissional, a divulgação do conhecimento são valores da sociedade tecnológica. Contudo, as atividades criminosas precisam e devem ser coibidas e desestimuladas. Precisamos debater mais sobre o perigo desses fóruns e, eventualmente, até monitorá-los. E se for o caso, denunciar.
Este artigo foi escrito por Renato Assef e publicado originalmente em Prensa.li.