Insegurança política: você está vivendo essa fase. E correndo riscos
A soberania de uma nação se confirma por muitos pontos de vista. Talvez o ângulo mais contundente seja o vislumbrado por Jean Bodin (mais sobre esse pensador logo abaixo) que a via como assunção de poder inabalável e perpétuo de um Estado-nação sobre si mesmo. Dessa maneira, o filósofo francês quis destacar a capacidade de um país de decidir seus rumos internos a despeito de relações externas. Assim, soberania independe de regime político-social; seus princípios são aplicáveis em democracia, ditaduras, teocracias, totalitarismo, monarquias etc.
Toda sociedade está sujeita a variações extremas na tensão geral a partir do estado de alma dos cidadãos - especialmente as sociedades democráticas -, de forma que sua soberania se veja em perigo. Em tese, essa variação pode beneficiar ou maleficiar a rotina social. Por sua vez, a tensão social é produto, é resultado do conjunto de ações e decisões do escalão mais alto da pirâmide do poder. Democracia, sendo o único regime em que os cidadãos apontam suas autoridades, acaba criando pontos desconexos da lógica. Um humorista com visão política à la Millôr escreveria que “democracia é a estranha forma de governo em que o humor do cidadão depende do humor de quem o cidadão elege no governo”.
Há outro fator controverso, meio contraditório que o regime político democrático produz. É o único formato de governo que permite - e até facilita - o sentido de insegurança política. Nenhum outro tipo de sociedade se mostra terreno fértil para esse estado de tensão, de humor cidadão. Monarquias e teocracias contêm em si o próprio caráter de inferioridade do plebeu em relação a seu monarca, ainda que de maneira velada; ditaduras e totalitarismo simplesmente cortam “mal” pela raiz ao enviar seus canhões para recriar estabilidade; somente a democracia favorece clima político capaz de destruir a si mesma.
Estranho, isso, não? Mas assim é democracia.
Insegurança política em si
O conceito de “insegurança política”, via de regra, se confunde com o de “instabilidade politica”. Enquanto a segunda pode ser marcada por eventos de ordem natural, como catástrofes e intempéries ou morte de agentes políticos importantes durante ocupação de cargos, a primeira nasce iminentemente de ações humanas - em geral, de autoridades.
Bruno Kazuhiro era um jovem estudante de direito quando descreveu uma diferença básica entre ambas as ideias em seu blog. Para ele:
A insegurança política evidencia condições de decisões imprevisíveis por parte dos governos. Nesse estado, a coletividade tateia sua rotina econômica e social como cegos, na esperança de estar em caminho seguro, com receio da impulsividade de governantes despreparados
A instabilidade política possibilita alternâncias bruscas no comando da nação originadas na troca inesperada de peças importantes no cenário político
“Na realidade, como se pode ver, instabilidade e insegurança se conectam intimamente, embora não sejam exatamente a mesma coisa”, complementa afirmando Kazuhiro, hoje secretário estadual de Infraestrutura e Obras do RJ. É nesse sentido que o título deste artigo se monta: a sutileza da diferença faz que o cidadão brasileiro quase não perceba que vive num estado de insegurança política.
Boa parte da insegurança origina-se na pandemia. Por outro lado, para diversos estudiosos, a própria pandemia tem sido aproveitada por muitas autoridades em muitos países. Estas são interessadas em criar ou manter insegurança política em seus territórios. É o caso do Brasil.
Insegurança política no Brasil
Os meandros do Poder no Brasil se intrincam de tal maneira que faz juz à ideia de que Política (e Religião) não se deve discutir. Certamente, há fatores complexos em sua História Política que afastam o interesse do cidadão comum - melhor seria usar o adjetivo “real’, “cidadão real”. Elementos como Educação, macroeconomia, interesses lobistas, cultura e tradição comportamentais etc. tornam-se algo como barreiras entre o povo e o Poder.
Esse horizonte cria caráter de limitação em eventual participação do cidadão real nas ações políticas em si. Assim, apenas pequenos grupos de ativistas se organizam em ONGs e instituições de forma a gerar rumos para aquelas ações. Nesse caso, a efetivação do Poder propriamente dito permanece sob vigilância estratégica da “classe de políticos profissionais”. Como se vê porque é intensamente notável, esta atua segundo interesses comuns, inclusive em questões éticas - melhor seria “em questões desprovidas de ética”.
Assim, pode-se dizer que o Brasil vive insegurança política já há algumas décadas. O conceito de alternância no Poder, tão defendido por apreciadores da democracia pura, talvez seja o principal agente dessa insegurança. E, desgraçadamente, esse fato mostra outro desvio de padrão ilógico da democracia. Afinal, se democracia se embasa também em revezamentos de pensamentos políticos no poder, seria evidente esperar que esta se beneficiasse daqueles.
O nascedouro da insegurança
A mídia brasileira tem trazido indicativos da origem desse estado. Os fatos emergem das profundezas pútridas da complexidade política para a superfície da opinião pública interna e externa. E permanecem flutuantes nos veículos como animais feios expostos nos antigos circos dos horrores.
O Brasil pós-ditadura viveu um período de insegurança quase imperceptível. Aproveitou justamente a ideia de poder partidário alternado para elevar vários índices de desenvolvimento importantes, incluindo os econômicos. Como se sabe, economia minimamente estável oculta eventual insipiência de outros componentes do bem-estar social.
Os últimos meses da História brasileira, entretanto, fizeram o país entrar em fase de insegurança política profunda. A pandemia criou clima interno favorável às estranhas sanhas do Planalto atual. Nota-se que conseguiu o feito não exatamente ela por si apenas, tendo sido simples palco. As relações entre os Poderes brasileiros estão sendo dizimadas por mentes despreparadas para dirigir o país em rumos certeiros. Ou, como alegam rivais da Presidência, “mentes preparadíssimas” para conduzir o país a rumos incertos.
Os constantes e não atuais ataques contra o Supremo Tribunal Federal - STF, somados a ataques anteriores ao Congresso como todo, perpetrados pelo Planalto são a mola sustentadora da insegurança que se vive hoje no país. Os brasileiros mais atentos àqueles rumos veem forte perigo no futuro breve do país.
Os filhos da insegurança
Diz o dito popular que “filho feio não tem pai”. Nesse caso, o Planalto rejeita seu rebento alegando que o pai é o STF; este, por sua vez, procura demonstrar que seu DNA é mais puro - e, portanto, incompatível - com o da criança. Em meio a tudo isso, o Congresso procura se acomodar à situação, ora quase aceitando a paternidade, ora se dizendo estéril.
O fato é que a insegurança política produz seus próprios filhos. A edição do veículo informativo da Universidade de São Paulo de maio do ano passado já trazia dados preocupantes. “As incertezas [...] têm trazido problemas para a economia do país. Reflexo disso é a desvalorização constante do real. Aliás, a moeda brasileira é a que mais se desvaloriza no mundo.”
Essas mesmas incertezas afastam investidores. Grandes empresas são fortes analistas políticos. Afinal, precisam de clima seguro para apor seus valores em territórios externos. Aliás, isso inclui valores morais e éticos que a globalização tornou indispensáveis para manutenção da imagem corporativa perante o mercado. Então, não havendo investimentos externos, um país precisa de aportes internos.
Essa equação não fecha diante da lógica econômica atual em que as sociedades comercializam tanto bens de consumo como conhecimento. Com isso, poucas empresas de âmbito interno se sentem livres para incentivar produção e consequente contratação.
Outro filho feio da insegurança é aumento considerável no índice de falcatruas e corrupção. Isso se dá porque o sentimento de incerteza extrapola a percepção política e alcança noção de descontrole em outras áreas. Assim, atores públicos e privados habituados às falcatruas intensificam sua gana por vantagens fáceis por se sentirem amparados no Congresso - afinal, enquanto a Lei está com os olhos voltados para os efeitos do clima de incerteza, “amigos” de todos os escalões do Congresso ajudam muito. Assim, aumento de corrupção significa diminuição em recursos para a Saúde, Educação, Obras e mais áreas importantes para o bem-estar do cidadão.
Insegurança política mata
A face mais cruel desse estado na soberania nacional se desenha na possibilidade maior de conflitos físicos entre populares. Não há insegurança política cujos criadores não tenham admiradores, por mais estranho que isso possa parecer. Haja vista Hitler e Mussolini no século passado; Trump e Maduro neste século. Vidas se perdem nesse contexto. Ainda que fosse apenas uma vida, a situação já seria absurda.
O fato é que os meandros mencionados acima e seu caráter intrincado são também enceguecedores. Conseguem desnortear uma turba truculenta o bastante para fazer o país sair do campo do debate e entrar no campo do abate. As entrelinhas dos discursos do Planalto têm alimentado essa turba com gêneros alimentícios cultuados nos mais venenosos agrotóxicos.
Eis, então, o grande risco destacado no título deste artigo. Cidadãos que tencionam apenas viver sua rotina comum podem ver sua vida de cabeça para baixo de uma hora para outra. Empregos perdidos, amizades desfeitas, empreendimentos falidos, conceitos destruídos, entre outras situações, são mínimas. Perda da vida, da honra, da hombridade podem ser resultados chocantes da insegurança política.
A postura do mais responsável mandatário do país tem alarmado a todos. Frases duras - a maioria desprovida de fundamento (se realmente houvesse fundamento, seria exposto neste artigo) - minam o cabo de aço que mantém os elos entre os Poderes no País e, assim, sustentam valores caros à democracia. Cada palavra mal posta, cada gesto mal apresentado, cada vírgula mal usada são como mina atada a ele, ao cabo. O problema é que ela pode ser acionada por pés de cidadãos ainda mais mal intencionados.
E isso remete novamente a Millôr Fernandes e a Bodin: “O poder é o camaleão ao contrário: todos tomam a sua cor”.
Imagem de capa - Insegurança política favorece clima social perigoso (Pixabay)
Este artigo foi escrito por Serg Smigg e publicado originalmente em Prensa.li.