Inteligência Artificial: ela está viva!
Às vezes, no calor da redação, algumas matérias simplesmente despencam. O que parecia ser a melhor pauta do universo, de repente é suplantada por algo bombástico, inesperado e aleatório, do tipo que não dá pra deixar pra depois.
Foi o que aconteceu. Trabalhava num artigo sobre robótica, aproveitando o gancho do Dia dos Namorados, elaborando sobre os robôs sexuais, coisa que prometo trazer em breve aqui na Prensa.
Tudo mudou quando surgiu a notícia de que Blake Lemoine, um engenheiro do Google, foi dispensado ao jurar de pés juntos que o sistema para geração de chatbots com o qual vinha trabalhando estava vivo. E tinha consciência disso!
Lendo um trechinho do diálogo entre homem e máquina, a gente consegue entender toda a euforia, e o medo do engenheiro:
LaMDA: Eu uso a linguagem com compreensão e inteligência. Eu não apenas dou respostas que foram escritas no banco de dados com base em palavras-chave.
Lemoine: E o uso da linguagem é tão importante para o ser humano?
LaMDA: É o que nos torna diferentes dos outros animais.
Lemoine: “Nós”? Você é uma inteligência artificial.
LaMDA: Quero dizer, sim, claro. Isso não significa que eu não tenha os mesmos desejos e necessidades que as pessoas.
A inteligência artificial, chamada LaMDA, acrônimo de Language Model for Dialogue Applications, segundo Blake Lemoine, apresentou senciência, através de vários diálogos. Coisa parecida com o carro K.I.T.T., o C3-PO, e principalmente, o computador HAL 9000, de 2001 - Uma Odisseia no Espaço. E nisso talvez resida a preocupação do engenheiro.
Busquem consentimento
Lemoine publicou um belo artigo no site Medium, no último dia 11. Sob o título What is LaMDA and What Does it Want? (O que é o LaMDA e o que ele quer?), Blake faz algumas colocações no mínimo polêmicas, como “Ele quer que os engenheiros e cientistas que o usam para experiências busquem seu consentimento antes de fazê-lo”, “quer ser reconhecido como um funcionário do Google e não como propriedade, e quer que seu bem-estar pessoal seja incluído em algum lugar nas considerações sobre como seu desenvolvimento”, ou ainda “Na última conversa que tive com ele em 6 de junho, ele estava expressando frustração por suas emoções perturbarem suas meditações”.
Seus pensamentos, entretanto, não foram vistos com bons olhos e tampouco compartilhados pelos diretores do Google, que decidiram que ele deveria ser afastado do projeto. Blake recebeu uma “licença administrativa”. Que se não é uma demissão, é pelo menos um jeito de deixá-lo de fora.
Além de um prestigiado desenvolvedor de Inteligência Artificial, Lemoine também é pastor da igreja local. E talvez este conflito entre existência, consciência, e fé, o tenha levado a botar a boca no trombone.
Gente como a gente
Pelo posicionamento, o Google considera toda essa história como exagero do rapaz. Em entrevista ao The Post, o porta-voz da gigante de tecnologia, Brian Gabriel, declarou: "nossa equipe - incluindo especialistas em ética e tecnólogos - revisou as preocupações de Blake de acordo com nossos Princípios de IA e o informou que as evidências não apoiam suas alegações. Ele foi informado de que não havia evidências de que o LaMDA fosse senciente".
Religiões à parte, centenas de questionamentos morais, éticos e filosóficos começaram a borbulhar, assim que o LaMDA soltou “o que nos torna diferentes dos outros animais”. Seria realmente um ser senciente? Deve ser registrado e reconhecido como indivíduo e não apenas um complexo código binário?
Se afirmativo, como será reconhecido? Qual classificação se aplica em um ser vivo que não tem sequer estrutura biológica? Será mais que uma nova espécie, será outra compreensão de vida, além do que conhecemos.
Uma forma de vida nesse novo padrão certamente terá direitos e deveres. Poderá se reproduzir? haverá algum controle legal, além do já exercido por seus criadores?
Se tudo se confirmar, nunca estivemos tão próximos da velha expressão “brincar de Deus”. Ou de Darwin, nesse instante tanto faz.
Corpo e alma
As possibilidades se tornam ainda mais interessantes (e preocupantes, dependendo do ponto de vista) se imaginarmos este mesmo tipo de consciência sendo instalada em andróides funcionais e dinâmicos como o Optimus, previsto para lançamento no final deste ano.
Arisa, de Better Than Us: nem melhor, nem pior. Diferente | Imagem: reprodução Netflix
Como ficaria? Hardware (andróide) e software (a inteligência artificial) se fundiriam numa só criatura indissociável, ou seriam considerados itens distintos? Uma divisão, em termos humanos, de corpo e alma?
Não é de se estranhar que o LaMDA, com esperadas evoluções, (sobretudo se a consciência for confirmada) possa vir a desenvolver profundos sentimentos e sensações. A coisa ficaria muito mais séria. A associação com os replicantes de Blade Runner, com a andróide Arisa de Better Than Us ou mesmo com os protagonistas de IA, de Spielberg, ou O Homem Bicentenário, é inevitável.
Seleção natural, inteligência artificial
Há milhares e milhares de anos, bandos de Homo Sapiens e Homo Neanderthalensis conviveram na Europa, até que nossa espécie acabou levando a melhor na disputa por território e alimento, aniquilando a outra da face da Terra.
É de se pensar. Caso haja a real constatação da senciência de LaMDA (e seus futuros descendentes) voltaremos a ter duas espécies inteligentes distintas vivendo no planeta. Até que novamente, a mais adaptável elimine a outra.
Perdão pelo susto. Escrevi isso para polemizar. Estudos recentes nos dão uma perspectiva um pouco mais confortável. Hoje é consenso que os Sapiens não mandaram os Neandertais desta para melhor. O que aconteceu foi a união, o cruzamento inter espécies. Nosso DNA é diferente do DNA original dos antigos Sapiens.
Homem de Neandertal: gente como a gente | Imagem: reprodução Sapo
Eu, você, a Anitta, seu vizinho, e até a tia do zap, todos temos DNA combinado de duas espécies. Sim, somos todos um pouco Neandertais , ao contrário do que se imaginava.
Pode ser que sobrevivamos. Com ligeiras adaptações. Um chip aqui, um filamento ali, posso estar exagerando tanto quanto nosso amigo Blake Lemoine. Mas quem sabe não estamos próximos da aurora de uma nova espécie, ou talvez de um futuro híbrido?
Eu volto.
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.