Inteligência Artificial: não entendi a sua mensagem
Você vai poder estar falando? | Imagem: Tyler Lastovich/Pexels
O telefone toca. Você atende.
“Alô?”, diz uma senhora do outro lado da linha.
E então, desliga.
Poderia ser um filme de terror, mas não é. Se não aconteceu com você, vai acontecer.
Sistemas de reconhecimento de voz estão entre nós há algum tempo. O atendente virtual da NET, implantado na primeira metade da década de 2000, é um clássico. Pedia calma, e fazia até o som de quem pacientemente digitava e conferia seus dados, com educação e cortesia ímpares. O C3P0 do telemarketing.
Tudo no intuito de disfarçar sua verdadeira natureza: uma máquina fria, impassível, disposta e pronta a conquistar o mundo. Ou pelo menos vender algo pra você.
Aqui na Prensa, você vai encontrar centenas de ótimos artigos sobre Inteligência Artificial, User Experience, APIs, Interfaces dedicadas e mais um monte de termos técnicos bacanas. Leia, e você vai ficar por dentro de todo esse mundo incrível.
Confesso que não entendo do riscado. Não à toa, fiz há alguns meses o artigo O Grande Guia do Metaverso para quem não entende de tecnologia. Descobri que não estava só: é meu texto de maior sucesso no portal.
Resolvi escrever esse novo artigo pelo ponto de vista do ser humano que atende ao telefone porque ele tocou, porque precisa, porque pode ser trabalho, porque pode ser importante, ou por puro masoquismo. Vamos classificar esta nova espécie como Homo Vitimus Telefonicus.
A Tia ataca
A cena de suspense descrita no início do texto é corriqueira. Semana passada, aconteceu comigo umas três vezes. E sei que nesta semana não escaparei. Sempre de telefones diferentes, oriundos de algum ponto da Grande São Paulo.
A voz, nitidamente uma gravação, remete a uma senhora de meia idade, provavelmente a uma tia que mora na Vila Maria, com quem você não fala desde o Ano Novo de 2013. Devota de Santo Expedito. A mesma que faz o pavê de chocolate seguindo a receita da avó.
Sacou a estratégia? Ao ouvir a nossa hipotética Tia (vamos usar aqui o acrônimo de Telefonema com Inteligência Artificial), somos cativados e não tentados a bater o telefone na cara de quem está do outro lado da linha. Mesmo sendo uma simpática mocinha usando o gerúndio.
A Tia tem duas estratégias: você responde de bate-pronto, esperando uma resposta, quem sabe um convite para tomar café. Pronto: ela desliga mesmo, com certeza que seu número existe, e volta a atacar mais tarde;
Senão, transfere para a simpática mocinha que vai estar perguntando se você vai estar querendo comprar um produto ou serviço, que ela vai estar ofertando, por um valor que você não vai poder estar recusando.
Quem sou? Onde estou?
E os que usam a psicologia reversa? Meu celular tem aquela campainha clássica dos velhos telefones analógicos, com seu peculiar senso de urgência. Você atende, muitas vezes preocupado, e o que acontece?
“Aguarde na fila, por favor”... e uma musiquinha com poderes tranquilizantes invade seu cérebro. Fila? Que fila? Você demora a processar, porque geralmente isso acontece quando você liga para alguém, não o contrário. Aí, já era.
Em poucos instantes, alguém do outro lado, geralmente de uma financeira, empresa de telefonia, organização não governamental, talvez uma cela em Bangu I, atenderá e lhe oferecerá algo. Que você não queria. Mas acaba ouvindo, pois não lembra porque cargas d’água foi parar ali.
Maria de Lourdes, essa desconhecida
Particularmente, enfrento há mais de dez anos um problemão com ligações de centrais de telemarketing. E que me faz crer que os sistemas são todos interligados e compartilham seus dados com um sorriso brejeiro.
Tudo começou na segunda metade de 2011. Meu celular tocou, número desconhecido, mas de praxe, atendi.
– Alô?
– Boa tarde. Gostaria de falar com Maria de Lourdes.
– Desculpe, esse não é o número dela – retruquei.
– Você sabe em que horário posso falar com ela?
– Não, moça, você não entendeu. Eu não sei quem é Maria de Lourdes.
– Tem certeza de que este número não é dela?
– Tenho, este número é meu há uns oito anos – expliquei.
– Este número não era dela recentemente?
– Escuta, quem é que está falando? – Cometi meu maior erro.
– Aqui é a Central de Cobrança das Casas Alagoanas e preciso falar urgentemente com ela. E este é o número que está no cadastro.
– Desculpe, esse número sempre foi meu.
– Tudo bem, senhor. Mas qual o número dela?
– Eu não sei quem é Maria de Lourdes. Não conheço ninguém com este nome!
Contrariada, a mocinha do outro lado encerrou a ligação. Levava jeito para conduzir um interrogatório. Me senti até um pouco culpado por não conhecer a tal Maria de Lourdes. Enfim… fui pra casa, vida que segue.
No dia seguinte, pela manhã, toca meu celular, adivinhe?
– Bom dia, gostaria de falar com a Maria de Lourdes.
Toquei a explicar tudo de novo, o rapaz nessa segunda vez não era tão bom interrogador, não tentou me fazer cair em contradição com tanta eficiência. Ele me pediu desculpas pelo inconveniente.
De tarde, nova ligação. Quem procuravam? Exato. Maria de Lourdes.
Expliquei pela terceira vez. Agora já não tão paciente. Pediram desculpas, falaram que tirariam do cadastro.
E eu acreditei!
No dia seguinte, mais três ou quatro vezes. Estavam no encalço da mulher, como sabujos atrás de uma parcela atrasada, sedentos de sangue e reais.
Reclamei. Supervisora. Diretoria. Ouvidoria. Postei no Reclame Aqui. Procon. Facebook. Anatel. Não fui reclamar para o Papa porque não consegui audiência com o Santo Padre.
Duas semanas depois, acho que alguém nas Casas Alagoanas (obviamente um nome fictício, mas já deu pra sacar de quem estou falando) concluiu que eu não entregaria fácil assim a Maria de Lourdes e pararam de ligar.
Fiquei tranquilo. Mas era o que eles queriam.
Pouco tempo depois, uma financeira me ligou, procurando a Maria de Lourdes. Vivi todo o calvário novamente. E assim ocorre, desde então.Lojas, bancos, serviços de cobrança independente, Serasa, enfim, volta e meia alguém procura a indigitada senhora. A mais recente na semana passada.
Certa feita, no final do ano passado, recebi nada menos que onze ligações procurando essa pessoa entre oito da manhã e uma da tarde. Eu tenho certeza que esses sistemas compartilham os números entre si, e tocam o terror nos clientes. Mas não acham a Maria de Lourdes. Deve ser a Carmen Sandiego do mundo real.
Imagino que ela faça compras e mais compras, coloca no crediário e usa meu telefone para não ser encontrada. De uns dois ou três anos para cá, quando ligam procurando, pergunto quem fala e conto que é uma estelionatária que distribui meu telefone por aí. Sempre conto a minha triste historinha.
Tenho vontade de radicalizar e dizer para a pessoa do outro lado: você não sabia? Faleceu mês passado… pois é… ou então dizer que a pessoa mudou de telefone e jogar um número aleatório… mas ambas podem dar problemas.
E eu não faço ideia de quem seja Maria de Lourdes. Talvez seja a voz da Tia que liga dia sim, dia não. Mas sinto que pedirão um exame de DNA para ter certeza de que eu não sou eu. Ou não sou ela, sei lá.
O labirinto do atendimento digital
Há outro personagem representando o expoente máximo dos problemas com sistemas telefônicos de reconhecimento de voz. Comum a bancos, empresas de telefonia, laboratórios de análises clínicas, órgãos governamentais (em várias esferas) e concessionárias de serviços públicos: o atendente digital.
Filhos diretos daquele simpático IA da NET, lhe atendem com um sorriso maroto no rosto virtual e disposição para engatar uma conversa sadia. Lhe dão bom dia, perguntam o CPF, dizem que já sabem quem você é, e perguntam o que você deseja.
Aí inicia-se o pesadelo.
Você conta sua necessidade. A máquina pergunta se pode especificar melhor. Você o faz. Costuma receber de volta um “eu não entendi sua mensagem. Pode repetir?”. Você repete. Alguns entendem. E transferem você para outra sub-rotina do programa que vai perguntar mais detalhes;
Te jogam em outro, outro e mais outro lugar. Eventualmente caindo no lugar certo. Ou entrando num loop infinito. Há clientes que foram reclamar de um sapato e vagam no limbo digital há meses, sem esperança, com o coração frio e sem brilho nos olhos. Talvez aguardando o fatídico encontro com o Minotauro digital que lhes dará fim a uma existência infeliz e patética.
Na segunda ou terceira pergunta, quando sinto que serei enrolado, radicalizo. Já solto um “eu quero falar com um humano”. Acredite, às vezes funciona. Recebo de volta um animado “entendi! Você quer falar com um humano! Se positivo, aguarde na linha”.
Claro que é positivo: se eu disse que quero falar com um humano é porque quero falar com um humano! Não costumo responder assim, mas tenho vontade. Diante do silêncio constrangedor, a máquina costuma mandar um “Entendi. Vou transferir sua ligação”.
Mas preciso ser educado, apesar de alguns destes sistemas nos levar às raias da loucura. O que vem por aí é bem claro, segundo a franquia Exterminador do Futuro, ou ainda a recente animação A Família Mitchell Contra as Máquinas. Não dá pra bobear. Ser legal com elas pode estar significando a sobrevivência de nossa espécie.
Este artigo foi escrito por Arthur Ankerkrone e publicado originalmente em Prensa.li.