Interatividade: você decide
Estamos quase lá | Imagem: Jé Shoots/ Pexels
Uma das grandes apostas feitas quanto à digitalização da televisão brasileira dizia respeito à interatividade. Em breve, todos poderíamos mandar e desmandar na programação, como diria o saudoso Odorico Paraguaçu.
Quinze anos depois da implantação da TV digital, a interatividade à nossa disposição é zero, ou bem perto disso.
Engessada por questões técnicas, comerciais e operacionais, além de toda a crise que emperra a aquisição de receptores domésticos, e também por parte do alto custo de implantação da transmissão, a TV aberta digital ainda levará um bom tempo para mudar este panorama. A interação ainda está distante do nosso controle remoto.
Será? Bem, assim é na TV aberta. Porém, no streaming, muitas experiências vêm sendo feitas, algumas apontando caminhos interessantes e promissores.
Acho que interagi com um gatinho
Gato de Botas: aventura pioneira | Imagem: Netflix
A Netflix, maior serviço do setor, realizou uma parceria pioneira no quase distante 2017, com os estúdios Dreamworks, lançando alguns episódios da série do Gato de Botas (spin off da franquia Shrek), onde o telespectador pode alterar os rumos da história. Tecnicamente nada muito surpreendente, mas bastante funcional e divertido.
Aventura sob controle
Mais recentemente, foi desenvolvido um episódio da série Carmen Sandiego, franquia de sucesso da própria Netflix. A animação permite que você interaja com os destinos das personagens, de uma maneira ainda mais apurada, com um número maior de escolhas.
Carmen Sandiego: aguardando seu próximo passo | Imagem: Netflix
As ideias evoluíram, e agora já há versões interativas de realities e documentários. O game de sucesso para celulares Perguntados lançou sua versão com episódios diários na plataforma. Sob o nome Trivia Quest, é um jogo de perguntas e respostas leve e bem humorado, fazendo o telespectador retornar diariamente para novos desafios.
Roubando risadas
Entretanto, uma das propostas mais interessantes chegou há pouco tempo: o desenho animado Pega, Ladrão! (no original, Cat Burglar).
Com 12 minutos de duração, diretamente inspirado nos curtas animados dos anos 1940, mostra o embate entre um Rowdy, um gato ladrão, e Peanut, um cachorro vigia noturno de um museu. Criação de Charlie Brooker, responsável pelo sucesso Black Mirror, a animação eleva a interatividade a outro nível.
Rowdy e Peanut, protagonistas de Pega, Ladrão! | Imagem: Netflix
A cada decisão, que faz o gato avançar (ou não) na história, Pega, Ladrão! faz uma série de três perguntas – esdrúxulas, na maioria das vezes – e arranca boas risadas por seus resultados. O desespero do felino aumenta ao perceber suas vidas sendo desperdiçadas pela imperícia (ou escolhas erradas) do telespectador.
É impossível não recordar de Tom & Jerry ou das animações que o mestre Tex Avery dirigiu para a MGM, Warner e Walter Lantz. Esta poderia ser uma história com Pernalonga e Hortelino, Patolino e Eufrasino, enfim, com todo o humor ácido da época, repleto de gags visuais primando pelo absurdo.
O clássico estilo de Avery, na série Droopy | Imagem: Universal Studios
Aliás, não quero insinuar nada, mas a Warner poderia usar seu maior patrimônio – os Looney Tunes – para desenvolver iniciativas semelhantes para a HBO Max. Seus personagens se prestam mais que qualquer outros a este tipo de aventura interativa. A Disney+ também poderia estudar a possibilidade de uma história daquelas clássicas do Pateta, explicando o funcionamento de alguma coisa. Seria hilária.
“E então? O que você faria?”
Também sem querer dar ideia, quem poderia inovar e já teria material disponível – de sobra – para um teste, é a dobradinha TV Globo / Globoplay.
Sucesso retumbante nos anos 1990, o programa Você Decide permitia ao telespectador decidir o final de histórias polêmicas usando o supra-sumo da tecnologia do período: ligações telefônicas. Nos intervalos, um apresentador conclamava o público a ligar para um número e decidir entre um ou outro final. Muitos passaram pelo posto, mas certamente Antônio Fagundes foi o mais marcante, com o bordão “situação difícil essa, não?”. E tudo isso está arquivado nos Estúdios Globo.
“Você decide, você escolhe o final” | Imagem: TV Globo
Com sua tremenda estrutura técnica, a Globo poderia criar um novo Você Decide, talvez com um número maior de escolhas durante o episódio, utilizando o Globoplay como primeira janela; quem sabe, na TV aberta digital no futuro, aproveitando as possibilidades do sistema operacional que virão com a versão 3.0?
Seria uma ideia com a marca do pioneirismo, pelo menos nessas bandas. Talvez até internacionalmente, já que nunca ouvi falar de iniciativas semelhantes envolvendo teledramaturgia.
Seria trabalhoso, mas episódios mensais no seu streaming podem alavancar ainda mais a base de assinantes. A ideia está aí. Só precisava ter certeza se é viável. Ainda estamos engatinhando nessa coisa de interatividade. Mas possibilidades não faltam.
Este artigo foi escrito por Arthur Ankerkrone e publicado originalmente em Prensa.li.