Intervalos
Janeiro de 2022 e penso nas coisas boas já me acon(teceram). Alguns atribuem tudo isso ao mérito e esforço, outros atribuem ao sobrenatural. O pensamento requer esforços líquidos para existir. Exaure as forças das veias amargas rompidas com chaves perdidas na ruptura das reações inesperadas quando o grito arde na pele. O mesmo não acontece com a fé. Busco a minha durante todo o fuso horário.
Pela manhã, ouço, sinto e oro palavras que brotam do peito. À tarde peço a deus oportunidade para colocar em prática tais palavras. À noite peço a deus para não perder a fé. Não tenho um lugar fixo onde eu possa conversar com Ele.
Durante minha trajetória, um quebra-cabeça de provocações me incitava ao questionamento da fé. Por que não conciliar razão e fé, como propôs Leibniz? Pensei nisso e optei por um lugar de paz: mantive a rotina de uma fé saudável e cada vez mais fortalecida por se justificar em uma explicação racional. Entendi que dentro ou fora dos muros da religiosidade formal se pode ter fé, portanto, minhas orações fazem todo o sentido.
A fé é o lugar mais extremo onde posso viver sem precisar pagar aluguel. É onde encontro alívio e significado para minha vida. Se alguém me perguntasse: Quais são as suas orações?- eu diria: todas as odes não confessadas a qualquer pessoa, por falta de confiança.
Em minhas orações eu nada pergunto, mesmo recebendo respostas frequentemente. A pessoa perguntaria: como tem esperanças? (em um tom de quem já sabe a resposta e porque nenhuma esperança tem). Eu não saberia responder ou explicar quando encontrei a fé e se a abandonaria e nem pretendo escrever um tratado sobre o que me conforta. Penso apenas no senso de comunhão, de reverência, de encantamento.
A melhor hora para buscar comunhão com deus é de manhã. A sequência talvez esteja inadequada. Lavo o rosto para o início da lucidez. Tomo meu café. Pego as vestes. Oro e raramente choro. Rotina impecável antes do pedido de oração. Joelhos postos, fincados ao chão. (Agora é me agarrar ao calendário e esperar a graça ser alcançada, pois milagres não existem).
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Gosto de meditar. É uma espécie de oração. Reservo um calendário no dia para observar como me sinto após esquecer um pouco dos manuscritos, dos prós e contras e da rotina. É como se eu fizesse uma limpeza no notebook quando o armazenamento está cheio.
O sorriso acontece. Guardado no peito, explode na boca. Convicção. Despe-se do tédio invocado no agora, esbarra nos muros da lamentação. Pássaro solto a fazer morada no rosto escondido na esquina. Dá rasteira no medo e voa a buscar abrigo naquele nó desatado há pouco. Dá sinais de calmaria. Sacrilégio abrir mão de si mesmo. Estabelece-se no corpo todo. Justifica o tal almejado brilho interior.
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A vida por aqui não anda caótica e isso me desobriga a pensar o que ficou confuso. Assim, organizar o espírito é um pedido a menos que faço em minhas orações.
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Há dias em que penso em uma sequência de fatos que faz sentido. Ando pelas ruas. Sinto a cidade do meu jeito. Gosto do paradoxo que mora nas ruas vazias, cheias de histórias para contar. Ruas feitas por gente e cheias de ausência me apetecem. Meu olfato suga as histórias que ali ecoam. Memórias guardadas nas paredes, folhas, chão. Consigo ouvi-las quando transbordam na falta de transeuntes.
Penso que em mim confiam e como nem tudo são flores (às vezes são folhas), as memórias entregam-me as pedras que encontram no caminho. Nas paredes estão gravados nomes e sobrenomes prepotentes e vidas sem sobrenome. Nas folhas, impressas as nervuras à flor da pele de quem não se contenta. No chão, o resumo dos passos duradouros de um gênio do cão enfraquecido pela mordida do espinho de uma rosa a invadir-lhe o dedo.
Agora entendo porque as paredes, as folhas e o chão se expressam. Precisam transbordar os próprios sentidos, mas sozinhas não dão conta. Fico à disposição caso precisem me contar do sonho desfeito entre quatro paredes, da folha seca oculta em diário, do chão onde termina o resto de fome. Se quiserem me falar dos dormitórios a céu aberto devido à ausência de paredes, dos sapatos pendurados nos fios de energia elétrica por não suportarem o chão e da folha carregada de metalinguagem, aqui estou. Apesar de sentir a cidade do meu jeito, são as memórias que desenham os fatos. Sou apenas percurso.
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Se algo ficou confuso, ensaio um ritmo austero no corpo enfraquecido pelo passar das horas. Desassossego. O medo pedia para ficar. Eu relutava. Tentei encontrar saída nas pequenas frestas do dia. A inquietação fragmentava a rotina. Quase arrastei pelo chão a bagagem de conflitos e o que vi foi mais uma inquietação à espreita, atrás da cortina. Buscava refúgio nas orações.
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Minas Gerais. Caía a chuva de verão, deselegante. Nutria o solo de modo assertivo e a cidade mergulhava num lânguido transtorno. O verde em volta reafirmava-se. Chuva deselegante e o tom dourado da pele eram notícias líquidas no Instagram.
(Curtam agora ou calem-se para sempre).
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Estou em um mundo-cubículo onde muita coisa pode acontecer. Durante um tempo, não pensei nisso. Mas agora, quero botar as verdades pra fora de casa. Amadureci. É natural crescer. Você também está em casa e eu o congratulo por isso. E às mulheres. E às crianças. Meus olhos mordem os leitores e eles estão sintonizados comigo. Isso não me assusta, eles sabem disso. Mulheres. Crianças.
As mulheres que me leem têm pele morena, olhos verdes, boca pequena. Sorriso sincero e aconchegante. Tranquilas, não esquentam com nada, mas identificam perigo ao redor. Mesmo assim, preferem ficar onde estão a enfrentar novos perigos (pelo menos, onde estão já conhecem o nome e o jeito de cada perigo). Sempre dispostas a ajudar a todos, são queridas em todos os espaços que frequentam.
[Sejam bem-vindas]
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Estou caindo bem no meio da vida de meus leitores, mas não como uma chuva inesperada. Entrei na vida de vocês em doses homeopáticas. Deixo claro que não contarei a história dos ancestrais de meus antepassados ou de um familiar em específico. Cada um deles contará a própria história. Cada um abraçará o próprio legado a seu tempo.
Corpo, olhos e cabelos discretos. Evita conflitos de toda ordem. Voz suave e econômica. Quase não se ouve. Quase não se vê a presença em locais públicos. Tem medo da crítica e, por isso, é quase imperceptível. Essa não é minha autobiografia, embora a personagem seja interessante de ser rascunhada.
Mordisco um pouco de literatura por segundo e penso onde cabe essa pessoa e a geografia de um corpo físico privilegiado na altura, mas não se vangloria por isso. Delicada no trato e no sorriso, espalha credibilidade aos subordinados. Presença tranquila quase não vista entre a maioria, se impõe não pelo medo. Naturalidade. Mudar de assunto.
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Conjecturas a respeito do futuro. A pandemia de Covid-19 levou-me a pensar no porvir. Gosto de planejar a semana aos domingos. Agora, percebi que um único dia no calendário não dá conta de organizar todas as minhas incertezas. Então, distribuo lacunas ao longo da semana e o que faço de segunda a segunda já não é tão previsível. Desconheço o que pode morar nestas lacunas e prefiro estar preparada.
Todo mundo tem espaço: viagem, um novo amor, uma nova amiga, um livro novo pedindo para ser lido. Tudo cabe na minha agenda e convive bem com o café da manhã-almoço-janta. Às vezes, vêm todos de uma vez e me desdobro em muitas, outras vezes um ou outro, então consigo ser mais inteira. Nesse processo de ser completa não teria a mesa do café como palco para julgamento de desafetos e contrários e nem fazê-lo a torto e a direito.
Explorar conflitos entre desafetos não cabe neste território. Não agora. Às vinte horas e trinta e seis minutos estou centrada no conjunto de informações que me invadem por meio do notebook. Lua de Saturno. Relógio biológico das plantas. Elas também têm fragmentos de fuso horário.
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Vinte e seis de janeiro. Mais uma parte de mim está publicada. Coloco tudo em terra firme para meus leitores. Gosto de dividir com eles um pouco da minha vida e memórias. Sinto de imediato a identificação deles com minha letra. O reconhecimento do leitor e a aproximação dele comigo é a certeza de continuar.
Leitores e leitoras esperam de nós, escritores, a reconfiguração de um mundo real por meio da arte. Agora entendo porque dentro de um livro cabe um mundo. Que nesse mundo caibamos todos nós. (Nesse momento, tarefas domésticas me convidam a entrar em casa. Preciso ir).
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Ao fazer as tarefas domésticas, tiro do lugar os objetos que me rodeiam para limpar os espaços da escrivaninha, penteadeira, cabeceira da cama e guarda-roupas. Na primeira cabem os elementos de que preciso para constituir a literatura confessional a que tenho direito. A penteadeira está cheia das feminices das quais não abro mão.
A cabeceira da cama é culpada pela continuidade do trabalho após eu deitar, pois guarda alguns livros em que me apoio e CDs com a estampa de Jorge Vercilo e Beto Guedes. Roupas compartilham um cantinho com as bolsas. Sapatos sem uso. Acessórios minimalistas. Todos os meus objetos encontram-se na mesma condição quando estão sem uso. Cada silêncio esconde um discurso.
Livros empilhados formam um mix de texturas e gêneros, nem todos ainda experimentados. Penso que a espera de cada um seja longa. Compreendo a perspectiva deles, mas a pressa é amiga da visão descabida. Preciso caber em alguns lugares. As roupas. Já nem sei as que ainda cabem em mim. Outros objetos: ainda tem cabimento? Sei apenas que estão em estado de vigília, assim como eu, na maioria das noites.
[Oi Gustavo, seja bem-vindo, estou na parte onde falo dos objetos que dividem o quarto comigo].
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Vinte e sete de janeiro e não há fotos na parede do meu quarto. Suporte de memórias e lembranças, elas me suportam. Estão quase todas guardadas no álbum. As outras fotos moram dentro de um caderno de processo criativo. Aguardam a vez de serem biografadas. Tenho poucas. Em nenhuma você verá minha sucessora. Apenas quem me antecedeu ou traçou comigo um paralelo, a exemplo de mãe, tia, primas e amigas.
Edgar Morin afirma que o diário serve para impedir que o dia se dissolva completamente. Eu digo o mesmo da fotografia. Por meio dela, um dia qualquer do calendário deixa de ser um dia qualquer. A imagem estática permite que eu me apegue e me agarre com unhas e dentes à não ficção ali presente. Respiro aliviada.
Rosa Acassia Luizari
Este artigo foi escrito por Rosa Acassia Luizari e publicado originalmente em Prensa.li.