Inventar na língua uma nova língua: A linguagem em Deleuze.
Antes de ser um conjunto de fonemas, prefixos e sufixos, a linguagem e sua expressão, a língua, é uma arma. É por meio dela que somos inseridos no mundo, que aprendemos significados e significantes, que traçamos e rompemos limites para a imaginação e a significação. Com isso, há também o uso político da língua: a inserção do cidadão em um determinado conjunto de significados que o definirão enquanto político, em dada sociedade:
‘’A linguagem é uma legislação, a língua é seu código.[...] Toda língua é uma classificação, e [...] toda classificação é opressiva.[...] Jakobson mostrou que um idioma se define menos pelo que ele permite dizer do que por aquilo que ele obriga a dizer.’’
Tendo isso em mente, Deleuze nos avisa sobre como é necessário utilizar a língua como instrumento para criar novos mundos possíveis. Em seu texto ‘’A literatura e a vida’’, Deleuze nos trará uma característica muito especial da literatura, que é, em suas palavras, a possibilidade de subverter a linguagem, combater a língua com a própria língua, fazê-la delirar. Escrever para ele, é sempre um devir, algo inacabado, algo sempre em vias de tornar-se, algo que atravessa a vida. O devir é sempre minoritário, nunca é maioritário. O devir homem-branco-europeu-adulto é um receptáculo vazio, não produz devir. O devir é sempre minoria, é contestação, é produção de desejo de um mundo possível, de infinitas possibilidades; é um arrombamento nos significados vigentes, é sempre o fora. A própria linguagem não tem o fora como limite, não pode ter, ela deve ser o próprio fora. É por meio da linguagem que podemos criar e questionar as regras, produzir efeitos não-linguísticos que se realizam por meio dela. Ela nunca pode ser mera descrição da natureza, nunca pode ser linguagem autobiográfica. Ela deve sempre buscar o fora, o outro, o não-eu, o devir-minoria. O devir que provém da linguagem, é sempre inacabado, é sempre um ‘’entre’’ um ‘’no meio de’.
Deleuze recusa a linha reta da linguagem, procura os desvios, os ‘’buracos’’ como dizia Beckett. A literatura tem essa proeminência de produzir desvios, um certo ''atletismo'' da língua, onde mesmo apresentando personagens em tese ‘’genéricos’’ nos mostra sua singularidade e diferença, mesmo quanto ao próprio gênero humano, como o capitão Ahab em Moby Dick. A literatura não se fecha em torno de uma noção de Eu, mas sempre em uma noção de Nós; É sempre multiplicidade de devires, até mesmo devires-animais, devires-plantas, devires-objetos. Interessa a Deleuze não o definido, o dado pronto, mas antes o indefinido, o devir que por conta de sua potência, não pode ser enquadrado em nenhuma caixinha organizadora. O aspecto fabulatório da literatura nunca deve ser fechado em torno de um ‘’eu’’, mas sempre no fora, no delírio, e nas virtualidades em potência. Deleuze repete aqui o gesto que desenvolveu junto com Guattari em O anti-édipo. ‘’Não se escreve com as próprias neuroses’’
Em o Anti-Édipo, Deleuze e Guattari vão criticar a teoria freudiana do inconsciente, onde o desejo estaria acorrentando a um teatro edipiano, um papai-mamãe. ‘’Todo delírio é histórico-mundial,’’ Assim, eles propõem o passeio do esquizo ao neurótico do divã. o Fora ao dentro. O Nós ao Eu. A literatura para Deleuze é saúde, pois nos arranca de nossas próprias neuroses e nos leva para o fora, à ‘’função fabuladora de inventar um povo’’. Não há mais um Eu, mas sim um ‘’agenciamento coletivo de enunciação.’’
Deleuze nos apresenta 3 aspectos principais da literatura: O Primeiro é uma ‘’decomposição ou destruição da língua materna’, que ele o faz pensando em Proust, que fomenta que o trabalho do escritor é fazer da própria língua uma língua estrangeira. Segundo, é a guerra à língua, ‘’A única maneira de defender a língua é atacá-la'', e por fim, o Terceiro, é que mediante a esses dois últimos aspectos, toda a significação da linguagem é torcida, revirada, a própria linguagem torna-se algo que ‘’não pertencem mais a língua alguma’’.
Assim como ‘’Em busca do tempo perdido’’ de Proust, e ‘’Ulysses’’ de Joyce, ‘’O jogo da amarelinha’’ de Julio Cortázar, produz efeitos destituíntes na língua. o livro é estruturado de tal forma que o autor começa a falar sobre 2 principais formas de leitura. A primeira, do primeiro capítulo ao capítulo 56. A segunda, segue-se um tabuleiro de amarelinha, com capítulos ‘extras’ e aleatórios, numa dada sequência não linear, onde encontramos de tudo: desde o alter-ego do escritor ‘’Morelli’’ refletindo sobre metafísica, até um anúncio de televisão alertando sobre o perigo que as braguilhas de determinada calça jeans estão provocando nos meninos, que prenderam seus órgãos genitais ali.
Assim como Deleuze, Cortázar propõe uma nova produção literária, faz uma crítica da mera representação, se apoia no uso das imagens e memórias, signos e significados completamente diferentes dos habituais. A imagem toma o lugar principal, subjuga o próprio enredo, o enredo se torna dependente das imagens, e não o contrário: o fio de uma história é uma sequência de imagens.
O que está em pauta para ele, é a arte como criadora de imagens, e não de uma representação da realidade. Uma crítica da relação estrita da filosofia moderna com a produção artística, uma crítica do pensamento racional objetivista, em defesa do pensamento artístico e imagético. Quando Cortázar fala sobre o tempo, não há para ele um tempo histórico absoluto, apenas diferentes tempos embora paralelos. Assim, sua leitura da história atravessa a linearidade cronológica de análise do tempo. Passado e presente estão juntos, às vezes ao mesmo tempo. A imagem nos conduz a essa percepção de tempo.
‘’Da palavra aos atos, che; em geral, sem verba não há res’’ Nesse capítulo, 93, Cortázar por meio de seu alter ego ‘’Morelli’’ entra em ‘’guerra’’ com as palavras, com o logos e com o cogito. É como se ele estivesse denunciando o discurso centralizado da língua como produtora das coisas do mundo. Mas sem o discurso, o que sobra? Sem a descrição, verbo não ‘’há coisas, sem verba não a res’’. A resposta vem logo: ‘’Logos, faute éclatante! Conceber uma raça que se expressasse pelo desenho, pela dança, pelo macramê ou por uma mímica abstrata’’ ‘’Seriam evitada as conotações, raiz do engano?’’ Há muitas outras formas de conceber, entender, criar o mundo que não seja por meio de palavras, que não necessite do peso do logos ou do cogito. A Paris de Cortázar é atravessada por imagens, memórias, momentos não-lineares, sonhos, pensamentos livres que fogem da estrutura clássica. Menos cogitos, mais imagem. Mais desenho, dança. O pensamento se faz necessário não para repetir o cogito, mas para fugir dele: Para sentir antes de descrever.
Assim como em Kafka, há um devir-toupeira. Em seu conto, ‘’A construção’’ somos levados para dentro de um labirinto subterrâneo, túneis e vias, e a ansiedade de um animal que está sempre à espreita do perigo. Que se gaba e tem medo de sua criação. Que anda de um lado pro outro, e nos leva consigo. Não há categorias para distanciar o leitor do personagem, e de sua construção. Conforme avança-se a leitura, cada vez mais essa distinção acaba perdendo o sentido. A própria forma que Kafka escreve, nos arrasta para dentro do mundo da toupeira, que também pode ser muito similar a um certo modo de vida humano.
‘’Confiança só posso ter em mim mesmo e na construção. [...]Enquanto fico deitado e penso nisso, valorizo muito essas alternativas, mas apenas como conquistas técnicas, não como vantagens reais, pois o que quer dizer esse sair-e-entrar sem dificuldade? Ele aponta para o sentido instável, para a autoavaliação incerta, para apetites sujos, más qualidades que se tornam muito piores em relação à construção, que ali permanece e é capaz de verter paz quando alguém se abre inteiramente a ela’’
Toda essa nova forma de produzir mundo é a característica de uma literatura subversiva e inovadora. Uma literatura que tem em mente não somente a característica de seu autor, a própria ideia de autor aqui pode ser questionada, mas que leva consigo a multiplicidade de devir, e a inesgotável fonte de criação que a fabulação e a imaginação nos permite. Uma literatura que não se adéqua às meras formas já conhecidas e tão repetidas, mas força a imaginação de outros mundos, de outras formas, fluxo, perspectivas, vidas. Um solavanco que faz a estrutura do sujeito racional e o antropoceno tremer, esmigalhar-se, tombar pela força de seus devires múltiplos e sua multiplicidade. E é exatamente como a literatura e suas características que podemos influenciar a política, mostrar que há infinitas possibilidades, que o que está dado é apenas uma possibilidade possível, e não A, ou - a única - possibilidade possível.
Bibliografia:
BARTHES, Roland. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França, pronunciada dia 7 de janeiro de 1977; tradução e posfácio de Leyla Perrone-Moisés. - São Paulo: Cultrix, 2013
DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica; tradução de Peter Pal Pelbart. - São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª edição).
DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia 1; tradução de Luiz B.L. Orlandi. - São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª edição). 560 p. (Coleção TRANS)
CORTÁZAR, Julio. O jogo da amarelinha, Companhia das Letras; 1ª edição (7 junho 2019)
KAFKA, Franz. O artista da fome / A construção, Companhia das Letras; 1ª edição (6 abril 1998)
Este artigo foi escrito por Felipe Cyrillo e publicado originalmente em Prensa.li.