Como jararacas ajudam a compreender a evolução nas Américas?
Você já deve ter ouvido falar que as Américas do Sul e Central (que formam o que chamamos de região Neotropical) possuem uma riqueza de espécies muito grande. Por isso, elas são muitas vezes focos de programas de conservação de animais, plantas e outros organismos. De fato, a região Neotropical é uma das regiões com maior riqueza de espécies do mundo e também uma das regiões que mais abriga espécies com distribuição limitada (que chamamos de espécies endêmicas).
Talvez a primeira coisa que veio à sua cabeça depois de ter lido o parágrafo anterior foi a Amazônia e a Mata Atlântica. Quando a gente fala de biologia, animais, organismos e conservação, geralmente lembramos quase que instantaneamente dessas duas florestas.
E, de fato, as duas florestas abrigam uma riqueza de espécies excepcional. Mas a verdade é que toda a região Neotropical possui uma riqueza extremamente interessante, desde as florestas da América Central e das ilhas que constituem as Antilhas até o sul da Patagônia, passando pela Cordilheira dos Andes e pelas regiões de vegetações abertas da América do Sul, como o Cerrado e a Caatinga. A diversidade biológica das Américas é de fato extraordinária!
Mas, por quê essa riqueza existe? Uma parte significativa da literatura acadêmica tenta até hoje entender o porquê existe esta grande variedade de espécies na região. O que esta região tem de tão peculiar para ela estar no topo no quesito de diversidade? Diversas hipóteses existem para tentar explicar este padrão, como o Grande Intercâmbio Americano de espécies entre América do Norte e América do Sul nos últimos 10 milhões de anos, o isolamento da América do Sul como uma grande ilha por pelo menos 50 Milhões de Anos e também as diversas mudanças climáticas e paisagísticas da região nos últimos 30 milhões de anos.
Esta última é particularmente importante para uma das regiões mais ricas e endêmicas da América do Sul (mas que infelizmente tende a passar longe do pensamento popular quando falamos de diversidade biológica): a Diagonal de Vegetações Abertas, ou simplesmente DVA. A DVA é um cinturão de paisagens sazonalmente secas formado por fisionomias vegetais mais abertas (como gramíneas, campos e até mesmo savanas) que separa as duas grandes florestas da América do Sul: a Amazônia e a Mata Atlântica.
Fonte: mapa de criação pessoal. Foto da Caatinga: Maria Hsu, CC BY 2.0 <https://creativecommons.org/licenses/by/2.0>, via Wikimedia Commons. Foto do Cerrado: Fabricio Carrijo, CC BY 3.0 <https://creativecommons.org/licenses/by/3.0>, via Wikimedia Commons. Foto do Chaco: Ilosuna, CC 1.0, via Wikimedia Commons.
A DVA é formada principalmente pela Caatinga, Cerrado e Chaco. Você talvez já tenha ouvido falar dela como “Diagonal Seca”, o que não é um termo muito apropriado, pois, apesar de apresentar sim climas geralmente mais secos (sendo possível encontrar até “desertos” no nordeste brasileiro), essa aridez é mais sazonal e local, já que dentro da própria DVA existem diversos blocos florestais muito parecidos com a Amazônia e Mata Atlântica (conhecidos como Florestas de Galeria ou Brejos de Altitude).
Talvez uma das coisas mais legais sobre a DVA é que, na verdade, ela nem sempre existiu! Sim, há pelo menos 25 milhões de anos atrás, a Amazônia e a Mata Atlântica eram conectadas e contínuas, formando assim uma única e gigantesca floresta que se estendia pela costa brasileira. Ou seja, antes de nós era literalmente tudo mato!
O surgimento da DVA se deu principalmente por dois fatores: i) mudanças climáticas entre 25 e 20 milhões de anos atrás, quando a América do Sul enfrentou um decréscimo na temperatura média e um aumento da aridez, que proporcionou a diversificação de diversas espécies de plantas do Cerrado e da Caatinga; e ii) soerguimento tardio da Cordilheira dos Andes (últimos 5 milhões de anos), que fez com que o Planalto Central emergisse à altitude atual e a região do Chaco afundasse. Tudo isso ajudou em muito o surgimento do Cerrado, Chaco e Caatinga.
Bom, vamos recapitular: antes, existia uma única grande floresta que ligava a Amazônia e a Mata Atlântica. Nos últimos 25 milhões de anos, mudanças no clima e na paisagem da América do Sul proporcionaram o surgimento da Diagonal de Vegetações Abertas. E esse surgimento, então, separou aquela gigantesca floresta sul-americana em duas (Amazônia e Mata Atlântica).
Como isso afetou espécies tipicamente florestais? Se eu sou um lagarto, sapo, mamífero ou qualquer outro animal ou planta que depende do habitat florestal, e de repente um “mar seco” invade minha florestinha e me separa dos meus outros amigos da mesma espécie, será que eu conseguiria me dispersar para o outro lado desse cinturão?
Ou, talvez ainda mais importante, se eu e mais meia dúzia ficarmos isolados reprodutivamente dos meus companheiros de espécie, será que com o passar do tempo nós passaríamos a ser outra espécie devido aos mecanismos evolutivos?
Resumindo: qual foi a importância desta divisão para espécies tipicamente florestais? Bom, foi exatamente isso que eu e meus colegas Drª. Laura Alencar, Dr Márcio Martins e Dr. Ricardo Sawaya analisamos em um artigo publicado recentemente na PLOS ONE, uma das revistas científicas mais importantes da área da Biogeografia (área que estuda basicamente onde os organismos estão e como eles chegaram lá).
No artigo, nós trabalhamos com as jararacas, um grupo de serpentes peçonhentas amplamente distribuídas na região Neotropical. As jararacas fazem parte do gênero Bothrops e atualmente contam com aproximadamente 45 espécies.
Dentro deste grupo de espécies, um grupo composto por 18 espécies só se distribui em florestas da região, nunca ocorrendo em áreas abertas dentro da DVA. Isso torna ele um grupo ideal para entender como a separação da antiga grande floresta sul-americana atuou na evolução e diversificação destas espécies.
Nós encontramos dois resultados importantes para o grupo. O primeiro deles é que, para pelo menos dois conglomerados de espécies dentro do grupo, o surgimento da DVA atuou sim como um fator de especiação.
Ou seja, para essas espécies, a separação das florestas isolou populações que não tinham acesso uma à outra. E, com o passar do tempo, as singularidades de cada uma das florestas (Amazônia e Mata Atlântica) foram suficientes para que cada uma destas populações separadas evoluísse para espécies diferentes. Em outras palavras, uma espécie se separou em duas! Nós chamamos esse processo de especiação alopátrica ou vicariância.
Outro resultado importante é que, além do surgimento da DVA atuar como um fator de especiação, ela também atuou como uma barreira de dispersão. Ou seja: antes, as espécies podiam transitar entre as florestas livremente; depois da DVA, não.
Dispersões ocorreram basicamente dentro de cada uma das florestas, e não entre elas! Isso é interessante pois pode demonstrar um fator importante para a evolução das espécies: a conservação de nicho. Nicho é basicamente todos os fatores importantes para a espécie sobreviver, como alimentos, habitat, clima, entre outros. Espécies com alta conservação de nicho são espécies que mantiveram o mesmo nicho de seus ancestrais.
E isso é especialmente importante para essas jararacas, já que até mesmo as poucas dispersões que observamos acontecendo entre a Amazônia e a Mata Atlântica aconteceram provavelmente por corredores de dispersão dentro da DVA, que são formados pelas aquelas Florestas de Galeria e Brejos de Altitude que comentei lá em cima.
Ou seja, até quando a espécie florestal se dispersa para a DVA, ela se dispersa através de pequenos blocos florestais dentro dela, e não pelas áreas abertas e mais secas.
E qual é a importância de se entender isso? Bom, como disse, estamos em uma das regiões com maior riqueza e endemismo de espécies do mundo, o que nos torna quase responsáveis pela sua preservação.
Entender processos biogeográficos (como vicariância e dispersão) e padrões de distribuição (como distribuições geográficas em florestas ou em áreas abertas) nos dá informações valiosas sobre a biologia e história natural de nossas espécies.
Em um país que vem sofrendo com políticas naturais e ecológicas beirando o desastre, a implementação de projetos de conservação e manejo de espécie é limitada pela baixa verba disponível para esses setores.
Portanto, o país não tem dinheiro para conservar todas as espécies da região. Então, é necessário compreender cada aspecto da história de vida das nossas espécies e os processos que governam a distribuição geográfica das mesmas, pois somente assim poderemos direcionar nossos esforços de conservação para espécies que estariam mais ameaçadas.
Além disso, agregar conhecimento sobre os processos que regem a vida na Terra nunca é demais. Ainda mais para uma região tão rica como a nossa e com processos geomorfológicos tão importantes como os presentes nela, como o surgimento dos Andes, da Diagonal de Vegetações Abertas, o soerguimento do Planalto Central e tantos outros.
Como diria Leon Croizat: “a vida e a Terra evoluem juntos”. Entender esta ligação só nos faz perceber que fazemos parte de um sistema muito maior, muito mais antigo do que qualquer um de nós. Entender isso é uma das formas de respeitar a vida na Terra.
Imagem de Capa - Foto de Renato Martins, via Wikimédia Commons
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Este artigo foi escrito por Matheus Pontes Nogueira e publicado originalmente em Prensa.li.