Jesus Gay?
Um show de intolerância e falta de cognição / Imagem: TV Gazeta (SP)
Imagine você, estagiário de jornalismo, trabalhando na redação da mais importante emissora de televisão da cidade, ouvindo o telefone tocar em uma mesa próxima.
Uma de suas funções é essa mesmo: atendê-lo. Além de todas as outras que os jornalistas não querem fazer, como passar café.
Você tira o telefone do gancho, solícito e com um sorriso na voz. Do outro lado, uma voz masculina vocifera contra a pouca vergonha que vocês fizeram, chamando Nosso Senhor Jesus Cristo de homossexual!
A cena surreal aconteceu na tarde de 13 de janeiro de 2022, na redação da TV Gazeta de Vitória, principal emissora do Espírito Santo, responsável pela programação da Globo em todo o território capixaba.
Na ponta da linha estava o estagiário, Pedro, que relatou toda essa maluquice via Twitter.
Por um lado, essa história já entrou para o folclore da TV brasileira pela porta da frente; por outro, expôs uma constatação sombria e recorrente sobre uma mazela da nossa sociedade.
Vocês querem destruir a família!
Segundo o estagiário, o homem ao telefone gritava “vocês não têm vergonha dessa palhaçada? Como vocês colocam na TV um homem com a blusa escrito JESUS GAY? Vocês querem destruir a família mesmo!”.
Mesmo acostumado com toda a turma do Globolixo, Pedro olhou incrédulo para a tela da TV. No ar, a Sessão da Tarde exibia o filme O Medalhão, com Jackie Chan. Não era lugar para essa imagem ter aparecido.
Com muito sangue frio, Pedro voltou a falar com o homem que espumava ao telefone, argumentando que poderia ser algum engano.
Foi quando lembrou que, vez por outra, algumas pessoas no Estado ligavam para a TV Gazeta de Vitória, confundindo com algo que foi visto na TV Gazeta, de São Paulo. O rapaz indagou e o homem enfurecido confirmou, questionando se tinham responsabilidade sobre o conteúdo. Afinal, Gazeta é Gazeta.
Com toda paciência (que eu não teria), Pedro explicou ao telespectador ensandecido que nesse caso, Gazeta não é Gazeta. Gazeta é Globo. Sem jeito e inconformado, o sujeito furioso encerrou a ligação.
Histeria coletiva
Corta para São Paulo. Avenida Paulista, sede da outra TV Gazeta. No ar, o programa de variedades Fofoca Aí, um dos maiores sucessos da programação vespertina da emissora.
Um dos apresentadores, Fernando Oliveira, mais conhecido como Fefito, assumidamente homossexual, sem nunca ter feito segredo, resolveu naquele dia tirar do armário e usar no programa uma camiseta (bem bonita, por sinal), cuja estampa, em bom francês, proclamava: Je suis gay. Em bom português, eu sou gay. Simples e natural assim.
A camiseta da discórdia / Imagem: Twitter
Pelo menos, era o que se imaginava. Do mesmo modo que Pedro recebeu a ligação na distante TV Gazeta de Vitória, os telefones e redes sociais da TV Gazeta de São Paulo ficaram abarrotados de mensagens enlouquecidas de telespectadores, querendo uma retratação da emissora a respeito dessa heresia do Jesus Gay.
A coisa tomou tal proporção, ao ponto de Fefito parar o programa e dar uma aulinha básica sobre o idioma de Molière, Amélie Poulain e Asterix: Je suis, Eu sou, não tem nada a ver com o pobre nazareno filho de Maria e José!
O sagrado direito da intolerância
Ainda assim, muita gente se recusou a aceitar a explicação, acusando Fefito de, entre outras coisas, mentir, afinal sua intenção era ofender. Lacração foi apenas a reclamação mais básica.
Ridículo, mas verdadeiro. E infelizmente alguns problemas se evidenciam. O primeiro, cognitivo. Nem com a explicação idiomática, Fefito se fez entender. O que nos leva ao segundo problema: teimosia e capacidade cada vez menor do brasileiro médio aceitar uma verdade, pois não é a verdade que gostaria de ouvir.
O terceiro problema, talvez o mais grave: não importa se você considera Jesus um ser divino ou não, a principal mensagem comunicada por ele e seus discípulos sempre foi a tolerância. Amai-vos uns aos outros como eu vos amei. Lembra? Mesmo fugindo de algumas aulas de catecismo, essa sempre me marcou.
E se Jesus fosse solteiro, casado, amasiado, apreciador de sertanejo universitário, gay, pai de família, Deus vivo criado à imagem e semelhança, ou sei lá, um pacato vendedor de pamonhas nas cercanias de Jerusalém? Que diferença faz? Suas mensagens de amor e compreensão não continuam as mesmas?
Paciência é uma virtude / Imagem: Twitter
Há anos, eu cultivava um baita cabelão castanho. De um mês pra cá, estou ruiva e com o cabelo curto. Meus textos mudaram? Não. E não tenho pretensão de ser a ungida. Shakespeare não escreveu em Romeu e Julieta, “se a rosa tivesse outro nome, ainda assim teria o mesmo perfume”? Isso em pleno século XVI?!
Nossa sociedade anda tão nociva, preconceituosa e podre, que se Jesus voltasse nessa altura do campeonato, apresentasse RG, CPF e tudo o mais, certamente haveria os que tentariam crucificar, só porque sua imagem não estaria de acordo com a que cada um têm para si.
Tá difícil, Brasil.
Eu volto.
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.