Jô Soares: Viva o Gordo
Já falei de minhas agruras como estagiária de jornalismo em um dos primeiros artigos que escrevi para nossa Prensa, ou talvez do maior golpe de sorte que tive na carreira.
O que nunca contei é que pouco tempo depois, já formada e trabalhando efetivamente naquele jornal, tive uma oportunidade ímpar, que me motivou a escrever o artigo de hoje.
Sabe como é a vida de quem está no início da vida profissional, sem dinheiro, cheia de contas para pagar, recém “ajuntada” com o namorado. Dividimos o aluguel de um apartamentinho em Pinheiros, zona oeste de São Paulo. Pequeno seria eufemismo: se entrasse com muita pressa, bateria na parede do fundo e já era. Mas tivemos bons momentos lá.
Nesta situação, qualquer troco é bem vindo. Uma amiga da faculdade trabalhava na TVS. Isso mesmo, porque nessa época o SBT ainda era um tanto esquizofrênico e usava as duas marcas simultaneamente. Ela me confidenciou que sairia de férias. Bom para ela, imaginei.
Ela era assistente de produção do ainda recente Jô Onze e Meia, talk show que revolucionou o fim de noite da tevê brasileira, e marcou uma virada na história de seu criador e apresentador, Jô Soares. Minha amiga queria me indicar para cobrir suas férias, porque entre suas amigas, era a única com um pouco de experiência em jornalismo.
"Não se deprecie, mulher!"*
A princípio, hesitei. Não só pela responsabilidade. Naqueles dias, era jovem, inexperiente e sobretudo idealista, achando que meu lugar era na imprensa “impressa” e nada mais.
Mas como estávamos quase vendendo a janta para comprar o almoço (e vice-versa), acabei aceitando. Lá fui eu, em plena quarta-feira, conversar com a equipe de produção. Se tudo corresse bem, começaria na próxima segunda.
Esqueci de contar, mas fazia o turno da madrugada no jornal. Se tudo desse certo, entraria na TV no período da manhã e sairia no meio da tarde. Era o tempo certinho de pegar o ônibus e descer no Sumaré, onde o programa era gravado. Eu que me virasse para compensar o sono e a vida pessoal durante um mês.
Lembro que fui recebida pela Diléa Frate, que apesar de ser extremamente gentil comigo, não teve como ignorar meu nada discreto nervosismo. Televisão, na minha cabeça, tinha todo um glamour, que na verdade não existe. Por mais que meu namorado, que trabalhava com isso, tentasse me provar o contrário. Sou teimosa.
Conversa vai, conversa vem, nos acertamos. Na segunda-feira, minha amiga foi curtir as merecidas férias na Praia Grande, e eu fui para os velhos e históricos estúdios do Sumaré.
Cabe lembrar que aquela não era a sede oficial do SBT. A Central era do outro lado da cidade, na zona norte; eu trabalharia nos antigos estúdios da Rede Tupi, alugados por Sílvio Santos, ao lado da recém-inaugurada MTV Brasil.
Depois de pouco mais de uma década de abandono, e ainda longe de concluir a construção dos estúdios da Anhanguera, o SBT passou a usar aquela velha estrutura para desafogar a produção, que crescia vertiginosamente.
Mas estava longe do meu tão sonhado glamour hollywoodiano. Apenas dois estúdios e meia dúzia de salas haviam sido reformados para voltar a funcionar. O resto do prédio da velha Tupi estava num estado de dar dó. Literalmente, caindo aos pedaços, cheios de infiltrações e mofo. Muito mofo. Minha rinite já atacou só de lembrar.
Aqueles dias mudaram meus preconceitos que tinha sobre televisão. Era um mundo muito mais amigável e divertido que poderia supor. Onde a palavra “equipe” é a grande chave para que tudo dê certo. Mas não estava ainda preparada para o que viveria em alguns dias.
"Falha Nossa!"*
Devia ser meu quarto ou quinto dia de trabalho nas “salinhas”, como chamava. Era um dia como os outros, exceto pelo constrangimento de ter perdido minha bolsa, dentro da sala da produção, e estar quase na hora de ir embora. Não era uma bolsa discreta, preciso afirmar.
Me preparava para passar vergonha e pedir um passe de ônibus, apelando para a caridade de algum colega, ou enfrentar alguns quilômetros a pé do Sumaré até Pinheiros, quando senti que alguém me observava. Ao olhar para trás, dei de cara com ninguém mais, ninguém menos, que o próprio Jô Soares.
O programa era gravado à tarde, e era a primeira vez em que nossos horários se encontravam, provavelmente por obra e graça da minha bolsa fugitiva. Vendo minha cara de aflição, soltou um “tá tudo bem, menina?”.
Eu estava acostumada a ver aquele sujeito na televisão desde a mais tenra infância, sobretudo nos humorísticos da Globo, onde permaneceu até 1987. Jô era uma lenda do humor, tendo se tornado nos últimos anos a maior sumidade entre os entrevistadores deste país.
Na minha cabecinha deslumbrada, não era uma pessoa; era o Jô. Quase uma entidade suprema da Comunicação. Balbuciei: “eu… bolsa.. não sei”, ou coisa parecida, numa resposta de fazer inveja à oratória do Tarzan. Ao que ele deu aquela famosa e gostosa gargalhada, seguida por um “senta um pouco, respira. Você vai achar”, e indicou uma cadeira próxima.
Sorri, mas confesso que não relaxei. E o constrangimento só aumentou ao perceber que minha bolsa estava ali, na minha cara. Caída entre os pés da cadeira.
Meus colegas trataram de fazer as apresentações, entre aquele gigante da TV e a parva assistente de produção. Jô perguntou se eu ficaria para ver a gravação. Seria bom, já que eu era nova na “turma” e seria legal conhecer como as coisas funcionavam além daquela sala.
Pensei nas horas de sono que não teria naquela tarde, mas quer saber? Que se dane, ou melhor, que me dane. Fiquei. Só pedi licença para usar o telefone da produção e avisar meu namorado-cônjuge que trabalhava razoavelmente perto, na TV Manchete, uns bairros pra frente. Sim, não havia celulares naquele tempo. De quebra, ganhei uma carona, pois ele passaria por ali a caminho de casa.
"Quem sois? Quem sois?"*
Naquele dia fui apresentada a um Jô “gente”. Um sujeito exigente, mas gentil, humano, e além de ser tudo o que imaginava, ia além disso. Passei a admirá-lo muito mais dali em diante. Além de tudo, derrubou outros preconceitos que tinha sobre as pessoas da “frente” das câmeras. O que pra começo de conversa já denota o quanto eu era preconceituosa, credo! Descobri que eram pessoas como nós, pobres mortais que se sujeitam a trabalhar loucamente e ainda gostam disso.
Durante aquele mês, por vontade própria, acompanhei gravações depois do meu horário diversas vezes. Aquela cobertura de férias foi antes de tudo uma imensa escola.
Dizer que passei a fazer parte do círculo de amizades do Jô porque seria uma tremenda mentira. Longe disso. Naquele período, mal e mal trocamos alguma amenidade. Geralmente estávamos correndo de um lado para o outro em nossos afazeres.
Mas ao puxar pela memória essas lembranças, já com lágrimas nos olhos, comecei a refletir sobre a imensa importância que aquele simpático e fofo senhor teve para a pobre cultura desse país. Que a partir de agora fica ainda mais pobre.
Jô, que poderia ter feito uma brilhante carreira na diplomacia, enveredou pelo caminho do humor, e não parou mais. Não me falha a memória, falava sete ou oito idiomas. Não chegava a ser um polímata, mas fazia bem qualquer coisa que se propusesse. A fineza com que se portava na vida real era idêntica à apresentada no vídeo. Não era cena, aquilo era ele.
Se orgulhava de ter passado sua vida sem nunca ter feito mal a ninguém. Ainda afirmou isso em uma de suas últimas entrevistas à tevê, no Provoca, do também genial Marcelo Tas, na TV Cultura. Uma das raras vezes nos últimos 30 anos em que o Gordo esteve do lado contrário da bancada do entrevistador.
Não posso afirmar se é verdade. Mesmo não intencionalmente, é difícil passar por uma vida longa, no caso 84 anos bem vividos, sem ter prejudicado minimamente ninguém.
Mas Jô certamente seria capaz disso. Sua presença, não me pergunte como, emanava algo essencialmente bom.
Além de sua mais conhecida faceta como entrevistador e ator em TV, apresentou por anos a fio um programa sobre jazz na Eldorado FM de São Paulo, gênero com o qual se identificava profundamente, e conhecia como poucos.
Escreveu, e também não foi pouca coisa. Além da fase dos best sellers, inaugurada com O Xangô de Baker Street, escreveu um monte de livros de humor, crônicas e outros.
O Xangô, aliás, teve uma versão para a tela grande, na retomada do cinema nacional, onde Jô fez uma pequena e hitchcockiana participação.
Por pouco, não foi parar nos quadrinhos em pelo menos duas ocasiões, nas décadas de 1970 e 1980. Mesmo em um tempo onde a produção de HQs nacionais ia de vento em popa, por motivos diversos seus personagens não emplacaram em bancas. Um dos casos mais curiosos era a revista que chegou a ter um único número publicado pela paranaense Grafipar em 1982, e que hoje é um caríssimo item de colecionador.
Mas não impediu que ele, em sua carreira de entrevistador, não desse as caras em quadrinhos alheios. Por mais de uma vez, foi homenageado nos gibis do Zé Carioca e da Turma da Mônica. Numa destas, entrevista o papagaio malandro do Rio de Janeiro, que tal como certa assistente de produção cobrindo férias, “trava” na presença do apresentador, num final hilário para a historinha.
Há um outro triste motivo para lamentar sua partida. Jô foi sempre fiel às suas convicções políticas e profissionais. Era sobretudo ético. Nunca deixou de se posicionar, mesmo quando parecia nadar contra a corrente. Só para depois percebermos que ele estava certo.
Jô foi grande entre os grandes, Fez rir em tempos sombrios. Dividiu sua inteligência com milhões de brasileiros (e portugueses, que têm verdadeira idolatria por sua história). Comprovou que a criatividade não tem limites.
Sua passagem não deixa uma lacuna na cultura brasileira. Abre uma cratera.
Eu volto. Beijo da magra!
* Todos os intertítulos deste artigo são bordões de personagens inesquecíveis do Jô.
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.