Klara Castanho e a Imprensa Sem Regras
Quanto vale a vida de uma pessoa? Quanto valem seus sonhos, suas dores, suas desilusões, seus segredos mais íntimos? Para alguns membros da imprensa é possível precificar a existência e a história de vida de alguém. Foi o que aconteceu com a atriz Klara Castanho.
A atriz foi vítima de estupro em algum momento do ano passado. Tentou lidar com o trauma guardando segredo, como muitas vítimas de estupro fazem. Porém, meses depois teve uma desagradável surpresa. Havia engravidado do estuprador. Após sofrer uma nova violência psicológica de um médico que tentou persuadi-la e ficar com a criança, Klara percebeu que não tinha condições psicológicas de criar o bebê como filho. Então providenciou para que ele fosse adotado por um casal assim que nascesse.
O pesadelo pelo qual ela havia passado parecia estar chegando ao fim com o parto e ela tinha certeza de estar fazendo tudo ao seu alcance para encontrar a melhor solução para si e para a criança. No entanto, as coisas se complicaram terrivelmente. Durante o tempo em que esteve no hospital para dar a luz a atriz foi veladamente ameaçada e chantageada por um enfermeira. Enquanto ainda se recuperava, Klara teve que ouvir a profissional de saúde, que deveria zelar por ela, insinuar que o seu parto acabaria chegando ao conhecimento de certo jornalista.
Para sua surpresa, não um, mas dois jornalistas ligaram para ela. O marido daquela enfermeira havia tentado vender a informação do parto e adoção do filho de Klara para diversos veículos de comunicação. Sem sucesso. Ele ouviu como resposta que “jornalistas não compram notícias”. Frustrado, entrou em contato com dois profissionais de imprensa conhecidos por divulgarem fofocas sobre a vida pessoal de celebridades. Eles compraram a notícia.
Um desses jornalistas foi Leo Dias. Conhecido colunista de famosos, Leo se dedica a escarafunchar a vida alheia e expô-la na imprensa. Quando a atriz lhe contou que tivera um filho como resultado de um estupro e daria a criança para a adoção, Leo Dias afirmou que não publicaria a história. O próprio Leo diria mais tarde que Klara ameaçou se suicidar se ele divulgasse o fato.
No entanto, o jornalista começou a contar para várias pessoas em off o que havia ocorrido. Uma dessas pessoas foi Antonia Fontenelle. Mas a atriz e agora apresentadora, mais conhecida por ter sido casada com o diretor Marcos Paulo, não foi a única. Leo esteve no programa The Noite de Danilo Gentili e citou por alto o caso como um segredo que não poderia revelar. O jornalista disse ao apresentador que revelaria o nome de Klara a ele nos bastidores e, ao vivo, comentou que a atriz iria “carregar um karma pesado”.
Nitidamente havia um pré-julgamento e uma imputação de culpa a Klara, por mais corretas que tenham sido suas atitudes diante de tamanha violência e traumas que sofrera. Ao assistir o programa, Antonia ficou indignada por algum motivo difícil de entender e decidiu dar mais detalhes do caso citado por Leo Dias na TV. A apresentadora afirmou numa rede social que o tal segredo se tratava de uma atriz da Globo que engravidara e dera o bebê para a adoção após o parto sem sequer ver a criança.
Antonia citava por alto a informação de estupro, deixando claro, de modo muito agressivo, que não acreditava no crime. Para ela, quem cometera o crime fora a atriz que deu seu filho. Além disso, na sua versão, Antonia também inventou que a atriz “abandonou” a criança num orfanato, sem citar o casal adotivo. Outros influenciadores que conheciam a história passaram a divulgar o caso, citando o nome de Klara Castanho.
A youtuber Dri Paz foi particularmente agressiva que a atriz afirmando que ela inventara que fora estuprada porque havia engravidado de um homem casado com quem se relacionou consensualmente. Em carta aberta na internet, Klara Castanho decidiu revelar em detalhes tudo que havia acontecido e as diversas violências que sofrera. Do estuprador, do médico, da enfermeira e seu marido, dos jornalistas, da apresentadora, da youtuber. Apesar da consternação causada, o show de horrores ainda não havia chegado ao fim.
Após vários veículos de imprensa acusarem Antonia Fontenelle de ter forçado Klara Castanho a revelar seu segredo contra a vontade, violando a sua privacidade, a apresentadora reagiu novamente com agressividade contra a atriz. Então, por algum motivo também difícil de entender, Leo Dias decidiu reaparecer na história. Em sua coluna no Portal Metrópolis, publicou o nome do hospital onde Klara deu a luz, o peso da criança e a hora e data do nascimento. Todos estes dados, pessoais e sigilosos, são mantidos em segredo pela lei por um motivo. Para resguardar os direitos da mulher vítima de violência sexual, do bebê e dos pais adotivos. Graças a Leo Dias, qualquer pessoa poderia identificar a criança e talvez até a família que a adotou.
Você acha que as coisas não poderiam ficar piores, mas acredite. Elas ficam. Após uma chuva de reclamações, Lilian Tahan editora do Metrópoles, decidiu apagar a postagem de Leo Dias. A editora foi ao twitter afirmar que enquanto “esteve fora do ar por algumas horas” o Metrópoles havia exposto dados de uma mulher vítima de violência e que isso era inaceitável. Acontece que essa é mais uma numa história cheia de mentiras.
Como revelou um print publicado no twitter do jornalista William De Lucca, Lilian curtiu uma postagem no twitter após o Metrópoles publicar o texto criminoso de Leo Dias com as informações sobre o hospital, Klara e o bebê. A editora responsável pelo Metrópoles sabia do conteúdo da publicação e a manteve no ar por horas. Leo Dias também não foi demitido do Metrópoles, apesar da enorme comoção causada pelo caso nas redes sociais.
Apesar disso, a publicidade negativa gerada a todos os envolvidos foi gigantesca a ponto de fazer com que, tanto Leo Dias quanto Antonia Fontenelle e Dri Paz, pedissem desculpas a Klara. Enquanto isso, o hospital demitiu a enfermeira. Recentemente, Klara decidiu entrar na Justiça com um pedido de liminar para que Antonia retire seu vídeo da internet.
A juíza negou o pedido alegando que isso seria “uma espécie de censura”. Entre tantas atrocidades e falta de ética ocorridas, este caso nos leva novamente a uma velha discussão sempre adiada. Qual o limite da liberdade de expressão?
Como jornalista, não posso concordar com o parecer da juíza, pois o que Antonia fez com Klara (e Leo também) vai contra tudo o que é ensinado na faculdade de jornalismo. O que nos leva a outro tema igualmente importante. Urge que a sociedade brasileira discuta os processos de regulação e democratização da mídia.
Convém lembrar que a regulação da mídia foi aprovada no Reino Unido em 2013. E a grande motivação foi o intenso debate social gerado pela ação irresponsável dos tabloides do magnata da imprensa Rupert Murdoch. A publicação de Murdoch, News of the World, chegou a grampear ilegalmente os telefones de quatro mil pessoas, incluindo autoridades, celebridades e até a família real britânica.
Quantas vidas humanas ainda precisarão ser devassadas, precificadas e vendidas como num leilão para que os governos e a sociedade brasileira decidam tomar uma atitude?
Este artigo foi escrito por Guilherme Cunha e publicado originalmente em Prensa.li.