Liga da Justiça de Zack Snyder - um caminho esburacado rumo ao Sol
Zack Snyder é um diretor de cinema mediano. Fez dois filmes reconhecidamente bons no começo da carreira, um dos quais, o sucesso 300, talhou seu nome no hall de adaptações dos quadrinhos.
Ele criou um jeito de intensificar ação através daquilo que iria se tornar sua caricatura - a câmera lenta - levando seu assunto para muito longe do realismo, e muito perto de uma imagem épica congelada no tempo. Como um quadro numa página de HQ, esperando o leitor virar a página.
Já se via um pouco de outros traços autorais de seus projetos. Uma sobriedade cafona. Uma paleta de cor desnecessariamente escura. Um entendimento distorcido de como e porque HQs funcionam em primeiro lugar. Uma fetichização da violência da qual nem Quentin Tarantino gostaria.
Depois de um ou outro desvio autoral, pulou na adaptação do clássico de Alan Moore, Watchmen, uma obra talvez complexa demais para ser adaptada ao cinema - e certamente longe das sensibilidades de Snyder - resultando num filme muito inconstante. E logo depois ele fez o reboot de ninguém menos que o último filho de Krypton em Homem de Aço.
Escalou o britânico Henry Cavill para criar um Superman com os conflitos mais estranhos que o herói já enfrentara. Veja, Snyder segue uma filosofia chamada objetivismo. Ele mesmo já declarou querer adaptar ao cinema uma obra da mãe desse objetivismo, a russa Ayn Rand. Pense como uma forma de individualismo ao cubo, onde o que é mais importante é sempre o indivíduo. Você faz o que é melhor pra você e o mundo que se exploda.
Ao encabeçar um filme cujo protagonista é, bem literalmente, uma paráfrase de Jesus Cristo, Snyder sentiu que precisava inserir um pouco do egoísmo randiano na filosofia do personagem. Concentrou isso na figura do pai de Clark Kent, Jonathan (Kevin Costner) e, novamente, entregou um filme inconstante.
"Então, você vai enfiar o Batmóvel na cara daquele sujeito." (Foto - DIvulgação/Warner Bros.)
A sequência, Batman vs Superman - A Origem da Justiça, é um filme muito mais coeso, e inacreditavelmente mal feito. Ninguém sabe qual acidente causou tamanha falta de qualidade narrativa, até mesmo em coisas simples como “construção geográfica das cenas”.
Porém, podendo agora usar um personagem como o Batman (um objetivista por excelência, interpretado por Ben Affleck), Snyder encontrou algo muito mais próximo de casa. E de quebra escalou Gal Gadot para o papel de Mulher Maravilha, o que já é suficiente para perdoar o resto do filme.
O passo seguinte seria um filme com a Liga da Justiça inteira. Mas aí o mundo real invadiu o mundo dos heróis com algo impensável.
Autumm, filha de Snyder e de sua esposa e parceira de produção, Deborah, tirou a própria vida enquanto a produção acontecia. Já enrolado com problemas no meio da filmagem, Snyder decidiu deixar o filme e se recolher com a família.
A Warner chamou Joss Wheedon, egresso do excelente Os Vingadores (e do não exatamente excelente Os Vingadores - A Era de Ultron) para completar o filme. Wheedon - um tempo antes de ser defenestrado de Hollywood por aquela coisa de sempre (acusações sérias de comportamento tóxico e até de racismo) decidiu jogar fora muita coisa do que Snyder já havia completado, incluindo o tom do filme e grande parte do roteiro, em prol de algo mais leve, colorido e acessível. Algo mais, por falta de palavra melhor, Marvel Cinematic Universe.
Liga da Justiça foi lançado como um filme manco, notadamente duas versões de uma mesma história em constante briga. Até o bigode do Superman virou problema.
Deborah e Zack levaram alguns anos para se recuperar. No meio tempo, Snyder iniciou um projeto em prol de prevenção a suicídio. Mas logo ele começou a aparecer novamente. Fazendo um uso inteligente da nova arma do século XXI - marmanjos online com falta do que fazer - arquitetou o seu retorno. Sua derrocada. Sua redenção.
Por conta de movimentos online, em especial a infame hashtag #ReleaseTheSnyderCut, Snyder realizou um milagre. Conseguiu convencer a Warner Bros. a lhe dar 70 milhões de dólares para reunir sua equipe original e finalizar a Liga da Justiça que tinha imaginado em primeiro lugar.
A pandemia ainda deu uma solução paralela: colocar o filme na plataforma HBO Max para o mundo todo ver. Quatro horas e dois minutos é um pouco pesado demais para a telona, não importa quantos fãs ensandecidos juram que fariam o sacrifício.
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A Liga da Justiça de Zack Snyder, como filme, é bem semelhante ao que se esperava. Dá para dizer que Snyder redime um pouco da insanidade de Batman vs Superman, porque pelo menos LJ tem coerência e um ritmo melhor pensado. Quatro horas pesa muito, naturalmente tornando a jornada mais maçante do que eletrizante, mas tem seus momentos.
"Ninguém se mexe, senão estraga o SLOW MOTION." (Foto - DIvulgação/Warner Bros.)
Snyder sabe compor cenas épicas, ainda que elas signifiquem muito pouco. Sua ação é sempre aberta, bem delineada, pensando no público que precisa entender o que está acontecendo. Assim, se mantém muito longe da vertente de ação que tanta gente tentou copiar da série Bourne, mas que poucos conseguiram.
Outra preocupação de Snyder é na grandiloquência visual. Seus personagens não são heróis, são deuses. Cenas que em outros filmes teriam pouca importância são filmadas com ângulos homéricos, lentes anguladas, gerando expectativas altas para a ação, mesmo que ridiculamente desnecessárias. O interessante é que finalmente a temática da história chega mais perto (embora ainda não no alvo) de algo que realmente faça uso da linguagem operática
Snyder nunca acertou suas temáticas com sua linguagem. Sendo um diretor puramente visual (e às vezes somente visual), seus roteiros sofrem por não terem uma tradução legítima para o audiovisual no campo das ideias. Mas Liga da Justiça é um passo na direção certa, e a razão é bem íntima, mesmo que o resultado seja melodramático.
Mesmo com cenas recicladas da versão anterior, Snyder modificou bastante das ênfases que queria para o filme, e é difícil não pensar que estava construindo uma forma de lidar com o luto, de exorcizar alguns dos infinitos demônios que assombram a cabeça de alguém que perdeu uma filha da forma que perdeu.
Todos os personagens deste filme estão em dívida com sua família. O vilão, Steppenwolf, papel de Ciarán Hinds, está obcecado em retornar à família que o expulsou. Barry Allen, o Flash (papel de Ezra Miller) coloca sobre seus ombros a missão de provar a inocência de seu pai. Arthur Curry, o Aquaman (Jason Momoa) renegou seu lugar na família - e em seu reino - por um sentimento de abandono legítimo. Diana Prince, a Mulher Maravilha, sente a distância de sua mãe ao mesmo tempo que fica enfurecida quando sabe que esta foi ameaçada. Kal-El, o Superman, o órfão das estrelas, começa o filme falecido, criando um vazio na vida de Lois Lane (Amy Adams) e de sua mãe, Martha Kent (Diane Lane).
O Batman… Bem, é o Batman.
Porém, o mais mudado por essa nova versão do filme é Victor Stone, o Cyborgue (Ray Fisher). Seu pai ausente causou um grande trauma, e o acidente que matou sua mãe e quebrou seu corpo não só aumentou o trauma, mas criou uma relação difícil entre eles. Seu pai, o cientista Silas Stone (Joe Morton) reconstruiu seu filho usando tecnologia alienígena, lhe dando poderes tecnológicos incríveis, mas transformando seu filho num monstro de Frankenstein moderno.
Snyder ainda é o objetivista de sempre. Afinal, Bruce Wayne não cria nenhum relacionamento durante o filme, usando todos à sua volta como ferramentas. Além disso, ainda sem saber o que raios fazer com um herói sacrificial legítimo, o Superman tem pouquíssimas falas, e muito pouco a fazer que uma marreta infinitamente pesada não fizesse.
A violência desnecessária, posuda, sem personalidade ou função, marca do adolescente-que-quer-ser-adulto (que reflete muito do mundo dos quadrinhos mais comerciais) está em toda parte.
"Eu quero o sangue jorrando até ali!" (Foto - DIvulgação/Warner Bros.)
Mas o contexto no qual Snyder usa esses personagens para expressar sua recuperação de um mar de trevas inimaginável é impossível de ignorar. A soma das partes é meio deslocada, com a grandiosidade que salienta as tragédias de uma maneira meio imediatista, mas sincera, e momentos íntimos sendo um contraponto tonal também sincero.
Quando Martha Kent vê seu filho ressurreto, trazido de volta à vida por mais uma daquelas geringonças inexplicáveis do quadrinhos, é difícil não pensar que não existe pai ou mãe que não daria a vida por um momento daqueles.
Ou a forma como, depois do irreversível, o Cyborgue encontra a reconciliação com seu pai. Kal-el, na hora que veste seu uniforme negro, o faz ouvindo a voz de Jonathan Kent, mas também a de seu pai biológico, Jor-El (Russel Crowe), que profetiza um destino junto com aqueles que ama.
Durante o filme, o único personagem a não seguir a cartilha dark’n gritty de Snyder é o Flash. Dono de algumas (quase todas) das piadas do filme, ali, no meio de quebrar a parede de dimensões e descobrir o que acontece quando se corre um pouco mais rápido que a luz, ele percebe que é capaz de fazer o tempo voltar em alguns segundos. E o mesmo artifício que em Os Vingadores - Guerra Infinita gera horror, aqui gera a salvação do mundo. E mais do que isso.
Fazer o tempo voltar é, de longe, o poder mais invejado de alguém em luto.
Lembra um pouco do que o Tarantino quis realizar com seu Era Uma Vez... Em Hollywood, de certa forma. Naquele filme, Tarantino tentava reverter, pelo menos dentro do mundo mágico do cinema, um trauma. Era um trauma muito mais coletivo e sociocultural, mas ele queria mostrar, com o Cinema (com C maiúsculo), uma forma de reverter o mal, de curar.
Extra filme, pelo lado de fora de Liga da Justiça, há uma necessidade de falar sobre casos bizarros de agressão online perpetrados pela tropa de fãs - novamente, o mal do século é a falta do que fazer. Eles se vêem no lugar de defender um diretor que, no mínimo, faz filmes divertidos e no máximo, é talvez o último bastião de uma masculinidade tosca e problemática.
Por conta de piadas sobre o filme, o comentarista, redator e influencer Load Comics sofreu uma chuva de ameaças, ataques racistas e opressão pesada. Snyder não tem quase nada a ver com esse tipo de coisa, mas é uma mancha que acompanha o filme.
Este cidadão tem mais o que fazer do que certos fãs. (Foto - DIvulgação/Warner Bros.)
Liga da Justiça de Zack Snyder é muitas coisas. E a maioria delas... Não é lá essas coisas. É um filme obtuso, com uma duração que não se explica, nem mesmo com a aparição de dois Lanternas Verdes. Há uma cena inexplicável perto do final que rebaixa tanto o nível do filme que todos os envolvidos deveriam ter sua associação com os sindicatos pertinentes cancelada.
Mas Liga da Justiça de Zack Snyder também é, para o bem ou para o mal, um milagre. Que contrariou tudo e todos. E que fez algo que eu não esperava: revelar um ser humano no meio de todo aquele slow-motion. Mesmo que não haja quase nenhuma humanidade em seus personagens. A verve filosófica de Zack Snyder ainda é altamente questionável, mas tem uma alma ali dentro.
Quem sabe uma alma de silicone, borracha, kevlar, rebites e testosterona. Mas mesmo assim, uma alma.
Que Zack Snyder encontre paz. Encontre uma linha de filmes onde possa expressar-se de maneira menos ilógica e mais coesa. Onde seus talentos visuais sejam bem usados (de preferência por um roteirista externo!).
E que um dia, se Deus quiser, reencontre seus amados ao Sol.
Imagem capa - DIvulgação/Warner Bros.