Linn da quebrada e a liberdade de ser
Uma tatuagem que traz em si uma narrativa de luta (Imagem/reprodução: G1)
Gostaria de perguntar algo pra você, que me lê agora: quantas vezes, hoje, você precisou reafirmar, para quem esteve em sua presença, a sua identidade?
Entre o “bom dia” e o “até logo” costumeiros e quase automáticos, você precisou esclarecer que você é homem ou mulher, hétero ou homossexual, preto ou branco?
Se a sua resposta é não, preciso te dizer algo. Primeiro, que você tem um privilégio. O privilégio de ser branco hétero-normativo em uma sociedade que te vê como “normal”. E, segundo, que esse mesmo privilégio é responsável pelo apagamento de diversas identidades que você não conhece ou ignora.
Recentemente, a cantora e compositora Linn da Quebrada, em mais uma edição do Big Brother Brasil, da Rede Globo, precisou, em diversas ocasiões, firmar e reafirmar sua posição identitária de travesti, resistindo a um sem número de provocações e brincadeiras de péssimo gosto.
Chamada de “ele”, ouvindo referências a si no masculino, sendo agredida com o termo chulo e pejorativo “traveco”; estes são alguns exemplos do que a edição 2022 do BBB expôs para as câmeras sobre o tratamento em relação à artista.
Além da pauta identitária, relevante e urgente na sociedade brasileira e mundial, a luta de Linn por reconhecimento e respeito suscita reflexões necessárias sobre a liberdade de ser.
Essa tal liberdade
A filósofa existencialista Simone de Beauvoir faz importantes contribuições para o debate sobre a liberdade.
Do que se trata esse conceito subjetivo?
Para Simone de Beauvoir, em seu livro Por uma Moral da Ambiguidade, “querer ser livre é também querer livres os outros [...] Uma liberdade que só se aplica a negar a liberdade deve ser negada”.
Ou seja, a liberdade não é algo individual, não existe para apenas um, ou melhor, não coexiste com o cerceamento da liberdade dos outros. Não adiantaria de nada lutar por sua liberdade, se o seu vizinho não pode gozar dela. E mais: se essa liberdade nega a de outras pessoas, nem liberdade ela é.
Continuando com Beauvoir: “e não é verdade que o reconhecimento da liberdade de outrem limite minha própria liberdade: ser livre não é ter o poder de fazer qualquer coisa; é poder superar o dado rumo a um futuro aberto”.
Ou seja, não é a liberdade de alguém em ser chamada pelo pronome que ela acredita lhe definir melhor, e que quer ser chamada, que pode cercear a minha liberdade. Reconhecer a Linn e diversas outras travestis e mulheres trans o direito de serem chamadas de “ela” não diminui qualquer outra liberdade de outro indivíduo, a não ser aquela “liberdade” que permite que alguém lhe negue este direito.
Explico: ser livre é, também, respeitar a liberdade do outro. Submeter alguém ao que eu quero não é liberdade, é opressão. A liberdade de Linn ser “ela” não fere em nada minha liberdade de ser quem eu sou. Mas eu destruo a liberdade de Linn se eu a chamo pelo pronome masculino.
Aqui, chegamos em um ponto bem elucidativo: a liberdade de um é limitada quando invade a liberdade de outro. E isso não é contraditório: chamar alguém de algo que essa pessoa não gosta não é liberdade, é violência; se referir a uma pessoa por um pronome que ela não quer (direito, diga-se de passagem, legalmente adquirido) não é liberdade, é transfobia.
Estamos aqui ressaltando que a liberdade de ser (existir enquanto indivíduo com identidade) precisa ser respeitada.
Lina Pereira dos Santos, travesti, artista, ícone
Eu acredito fortemente que Linn não precisa provar nada pra ninguém. Ela já é um ícone da música brasileira e do movimento LGBTQIA+. Sua qualidade vocal e musical não precisam ser postas à prova (a não ser que a própria Linn queira).
Lina conseguiu seu direito de ter uma certidão com o nome com o qual se identifica e hoje aparece para milhões de pessoas trans e travestis como um signo de representatividade.
Linn em divulgação de apresentação no Festival CoMA.
Contudo, a sociedade brasileira e seus núcleos e estratificações tidos como "conservadores" permanecem enxergando-a como um corpo estranho, uma personagem alvo de ataques, achincalhes e piadas.
A transfobia é real e em nosso país ganha contornos ainda mais bizarros. Segundo agências internacionais como a Transgender Europe e Trans Respect Versus Transphobia Worldwide, cerca da metade dos homicídios de transexuais do mundo ocorrem no Brasil, país que é um dos maiores consumidores de conteúdo adulto envolvendo transexuais, segundo pesquisas de plataformas mundiais de pornografia.
A luta pelo reconhecimento do termo “ela” e do tratamento com pronome feminino está na ponta de um problema profundo, arraigado em uma cultura machista, misógina e transfóbica, num Brasil em que parte da população reproduz os mitos de “democracia racial” e do “jeitinho brasileiro”.
Linn, repito, não precisa provar nada, mas pode (se ela quiser, claro), com sua voz, fazer o preconceito ao seu redor implodir no BBB, com uma projeção imensa para milhões de pessoas.
Este artigo foi escrito por Pablo Michel Magalhães e publicado originalmente em Prensa.li.