LOL: menina não entra?
“Joguinho é coisa de menino”.
Ouvir esta expressão, ao menos para quem viu a aurora dos videogames, era comum; se você nasceu e foi criada numa cidade do interior, em um Estado com fama de provinciano, acrescente mais dois pontos. Se você ainda era considerada o ponto fora da curva na família, perfeito: passou de nível.
Esse era exatamente meu caso. Videogames chegaram aqui com o desbravador Telejogo, da Philco/Ford, em 1977. Criança, fiquei maravilhada com aqueles quadradinhos que se moviam pela tela e batiam uns nos outros, exclamando um bipe irritante.
No Natal de 1978, um primo ganhou um destes. Passei horas jogando com ele, nos festejos familiares de final de ano. Do alto dos meus oito anos, descobri que levava jeito no futebol e no tênis. Mesmo que só víssemos figuras geométricas luminosas, o importante era a imaginação. Sob o olhar enviesado de minha mãe.
É evidente que logo coloquei na minha cabecinha que o tempo urgia e eu precisava de um daqueles para ser uma menina feliz. Não obstante, o treco custasse uma pequena fortuna, mal sabendo que minha mãe não tinha dinheiro para tal extravagância. Me enchi de coragem e pedi um como presente de aniversário para o abril vindouro.
Independente da cara de filhote de cachorrinho que tenha feito, obtive aquela resposta, dolorida como uma bofetada: “joguinho é coisa de menino”.
Tentei argumentar, em vão. Disse, inclusive, que jogava muito melhor do que o primo, o que certamente agravou a fúria maternal.
O melhor que consegui naquela noite foi ser enviada mais cedo para o quarto, e sem direito à sobremesa. Dona Ana, a senhora minha mãe, até hoje é conhecida por ser firme em suas decisões. Mesmo nas equivocadas.
Todos somos iguais. Ou não?
Comprei um videogame depois de adulta, casada. Preciso admitir, minha habilidade ficou nos quadradinhos do Telejogo. Sou uma negação nos games de hoje.
Para a geração atual, que sequer sonhava nascer quando derramei lágrimas sentidas, videogames não são mais tabu. Todos somos iguais perante os consoles, certo? Era o que eu imaginava.
Pois que neste ano da graça de 2022, recebi uma denúncia via Twitter, sobre casos de misoginia, preconceito pesado mesmo, no mundo dos games. E não em qualquer lugar: justamente nas plataformas do épico, lendário e queridinho das multidões, League of Legends.
Meu eu de oito anos de idade, que ficou sem seu sagu de uva na sobremesa daquela noite, emergiu com força, gritando na minha orelha já cinquentenária: “se você não pegar essa pauta, nunca vou te perdoar. Precisamos de justiça”.
Munida de algumas informações enviadas pelo meu contato, fucei tudo o que encontrei pela frente em relação à participação feminina no jogo. Comecei a me esgueirar como uma figura esguia pelas sombras. Descobri coisas realmente perturbadoras.
Mas como tudo na vida precisa de contexto, vou aproveitar o momento e explicar para você o que vem a ser esse tal League of Legends, também conhecido como LOL. Caso conheça, não custa relembrar.
Trabalho de equipe
Lançado em 2009 pela Riot Games, é um videogame multiplayer, onde os jogadores participam através de personagens (avatares), em equipes de cinco contra cinco. Cada partida leva uma média de 40 minutos, e o objetivo é não morrer. Isso enquanto percorre os cenários do mundo virtual, destrói um monte de coisa pela frente, até achar uma jóia gigante e aí acabar com tudo. Entendeu? É mais ou menos isso. Um “salve-se quem puder” desenfreado.
League of Legends tornou-se um dos e-Sports mais populares, mobiliza muita gente e muito dinheiro. Pelo menos dez pessoas estão envolvidas em cada partida. Elas acontecem o tempo todo em todo o mundo. É claro, necessita de muita estratégia. Para isso, nada melhor que um providencial chat, que fica ali ao lado da visão principal. Aqui começa o problema.
O chat permite que todo mundo, como seria de se esperar, se comunique. O espaço (como em toda boa área de comentários da Internet que se preze na atualidade) vira um campo aberto onde ocorrem ataques muito mais violentos do que as batalhas do jogo.
Colocações expondo preconceitos de todo o tipo pipocam por ali, numa violência e verborragia que extrapolam qualquer limite. Contra negros, LGBTIQ+ e claro, mulheres. Gracinhas e cantadas são as mais leves interações por parte dos jogadores homens. Um espelho retorcido da vida real, porque reflete o lado mais podre das almas.
Difícil de suportar
O jogador, que trouxe a denúncia, enunciou: “no meu caso, que sou suporte, jogo sempre em dupla com alguém. E é muito comum o time adversário focar mais no meu colega de jogo quando ele é mulher”.
Não se trata de explorar menor força física, até porque num jogo desse tipo, não significa nada. Está provado que essa coisa de sexo frágil já era. É apenas o velho assédio, o preconceito, o “joguinho é coisa de menino” em sua mais nova embalagem.
O jogador continua: “quando uma jogadora usa o seu nick feminino (“Ana”, “Fadinha” ou qualquer coisa que identifique o gênero) é muito, mas muito comum, o time adversário focar os ataques nela”. É o que ele define como “machismo sistêmico”, e eu assino embaixo.
O “sistêmico” nesse caso, não é só uma palavra bonita: “Eu jogo esse jogo há mais de nove anos. Nesse ano eu tenho umas trezentas partidas. Isso acontece repetidas vezes”.
Comecei a pesquisar o assunto. Realmente, não era um fato isolado. Me deparei com um caso que ganhou manchetes de veículos especializados, mas deveria ter ido muito, muito mais longe.
Batalhas desiguais
No já quase distante 2019, a equipe Vaevictis eSports estreou com força total no LOL, dentro da etapa russa. Seu adversário era o time RoX. É importante assinalar que a Vaevictis era formada apenas e tão somente por mulheres.
Na hora do chamado pick e ban, onde são banidos personagens, os jogadores da Rox escolheram apenas os “campeões de suporte”. Os personagens de suporte no League funcionam como apoio, sem possibilidade de causar dano e não têm autonomia. Desta forma, a RoX dava a entender que a equipe da Vaevictis não representava ameaça.
Sem cálculo estratégico, ficou claro se tratar de um ato de machismo. A Riot Games, que, além de ter criado, administra internacionalmente os campeonatos de League of Legends, enquadrou a RoX no item 10.2.4 do regulamento da competição. O item delibera sobre a proibição de “atitude tóxica e difamatória, seja por questões de raça, tom de pele, etnia, origem social, nacionalidade, gênero, opinião política, orientação sexual, status financeiro ou qualquer tipo de opinião e razão”.
Não houveram sanções. Nada muito além de uma advertência. Atitudes similares não deixaram de acontecer. Pelo contrário, a falta de uma punição mais severa aguçou comportamentos machistas e discriminatórios mundo afora. Sinal dos nossos tempos.
Ficar de castigo
Casos de homofobia também são frequentes. Há um ano, sites especializados estamparam um vergonhoso caso ocorrido aqui mesmo, em terras brasileiras. O jogador PazPeaceful (veja só a ironia do nome), passou a ofender com todo tipo de termos homofóbicos seu rival, Gabriel “Minerva”, ao perceber que estava na iminência de perder a partida.
A Riot Games, desta feita, foi além da advertência. PazPeaceful foi banido por… catorze dias! Míseras duas semanas! Isso causa menos efeito do que ser deixada sem sobremesa aos oito anos de idade.
Na época, a punição branda revoltou muita gente, e muito barulho foi feito nas redes sociais. E… acabou ficando por isso mesmo. O que prova que, de certa forma, o ambiente dos games continua sendo “coisa de menino”. Mas de meninos malvados, sem o menor espírito esportivo, empatia ou civilidade.
Devido a ocorrências deste tipo no League of Legends e em congêneres, muitas garotas desistiram do mundo dos games. A intimidação é brutal.
Pressão total
Conversei com Vânia*, dezenove anos. Natural de Belo Horizonte, se aventurou pelo mundo dos games (para minha inveja) desde os sete. Chegou ao LOL há três, e, no início deste ano, simplesmente jogou a toalha. “Não tava aguentando mais tanto imbecil”, diz, com uma pontinha de lamentação.
No primeiro ano, as coisas eram mais fáceis. Ou menos complicadas. Ainda descobrindo os meandros do jogo, usava um nick genérico. “Ninguém sabia se era homem ou mulher” e, justamente por isso, “alguns incomodavam, mas não parecia ser nada muito dirigido”.
No final de 2020, mais segura no jogo, resolveu assumir um nick que revelava o gênero feminino. A partir de então, não teve mais paz. “Até gente com quem jogava há um tempo, passou a me tratar de maneira mais agressiva… não fazia sentido. Preconceito mesmo”.
Após uma série de episódios de misoginia, Vânia concluiu que League of Legends não era território para ela. Abandonou a arena há cerca de nove meses. “Cansei”, diz. “Tava atrapalhando minha vida. Quando senti que tava ficando depressiva por causa das coisas que rolavam no LOL, pulei fora”.
Para sempre? “Não sei. Mas tinha que mudar alguma coisa lá dentro, porque dentro de mim mudou muito. Eu gosto daquilo, das partidas, daquele mundo. Mas segundo minha psicóloga, preciso gostar mais de mim”.
Silêncio ensurdecedor
Não será com a falta de punição ou o silêncio que o ambiente dos games multiplayer se tornará mais saudável, ou igualitário. Cada caso deste tem de ser denunciado e precisa repercutir.
Porque é absurdo, olhar lá de trás, dos anos 1970 e 1980, quando fiquei sem sobremesa porque insisti que “joguinho não era coisa de menino”, e perceber que não evoluímos. A impressão que tenho é que retrocedemos. Tá mais do que na hora disso mudar. E rápido.
Sabe algum caso do tipo? Ou outra coisa que gostaria de falar? Chame no Twitter. Estou esperando!
Eu volto.
* O nome real foi alterado a fim de preservar a identidade do entrevistado.
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.