Luca - Pixar, infância e o nosso coração
(spoilers de Luca e de Divertida Mente)
O filme mais eficiente em destruir a estrutura de “marmanjo barbado” que eu mantenho por simplesmente ter barba, nos últimos tempos, foi Divertida Mente.
O lançamento de 2015 foi capaz de abrir um oceano de emoções e choro como poucos filmes tinham conseguido. Muito por conta do quanto ele falava às estruturas psicológicas - queira o filme seja cientificamente plausível ou não - assunto que importa muito ao adulto, quando este nota que, às vezes, nem tudo está bem consigo mesmo.
Aliado à sinceridade da história e dos personagens, existe o drama de colocar uma criança em perigo.
Uma narrativa boa, que cria conflito e faz a audiência sentir medo pelos personagens, precisa demonstrar como “o vilão é perigoso”. No caso de Divertida Mente, não há vilão, mas há um mal a combater: a personalidade da menina Riley está se desfazendo.
Quando essas ilhas caem, você esquece que está vendo um filme "infantil". (Imagem/Divulgação - The Walt Disney Company)
O começo do filme é muito bom em explicar o porquê de temermos isso. As “ilhas de personalidade” formam o ser humano que ela é. E os traumas pelos quais Riley passam ao longo do filme danificam as ilhas. Quando todas terminam sendo destruídas então, o coração do público cai junto com elas.
“E agora?” é o que todo contador de histórias quer ouvir de seu público. Quando não conseguimos imaginar como os heróis vão escapar dessa enrascada. Se a narrativa consegue amarrar isso num âmbito emocional, então, ganhou o dia.
E em Luca, isso acontece num dos momentos mais delicados que eu vi em animações recentes.
Amizade à italiana
Luca é um monstro marinho que vive às margens de um vilarejo italiano, num ano indefinido do século XX. Pode ser os anos 60, os anos 80, pode até ser semana passada. O cenário de crianças se divertindo num lugar paradisíaco, uma vila de pescadores onde todos se conhecem, perfeito para passar verões despreocupados, não pertence a tempo algum, mas sim à memória.
Sua família superprotetora não quer que ele vá brincar no “mundo de cima”, o lugar seco onde vivem humanos que têm medo de monstros marinhos - além uma relação meio “combativa” com tudo o que vem da água. Mas Luca encontra Alberto, um monstro marinho solitário e rebelde, que já está acostumado a se disfarçar de humano para viver aventuras.
Tem muito sorvete e macarrão neste filme. (Imagem/Divulgação - Walt Disney Company)
E aí começam as descobertas de um mundo completamente novo. De novos desafios, amizades, inimizades, e desejos de liberdade. De correr despreocupado com tudo numa lambreta Vespa, de aprender sobre o universo, de comer o melhor macarrão do mundo.
De descobrir como ser criança.
Tudo numa amizade sólida e bela entre dois garotos que encontraram um no outro um amigo verdadeiro, um irmão perdido.
Até que em um momento, Luca, desesperado por manter muito do que descobriu amar, como sorvetes e estrelas, comete um erro tremendo. E imediatamente lembro de quando Riley perde sua personalidade.
Um malfeitor aborrescente local consegue descobrir a natureza de Alberto. E ao invés de defendê-lo, Luca aponta para o melhor amigo e diz “Monstro!”.
Não poderia acontecer coisa pior no filme. A amizade entre os dois encontrou o obstáculo mais intransponível. Reverter a situação, nos primeiros instantes, é inimaginável. Perguntamos “E agora?” para nossa TV, e o próprio Luca mostra que não sabe a resposta.
Quando não se consegue uma Vespa de verdade, os garotos-peixe dão asas à criatividade. (Imagem/Divulgação - Walt Disney Company)
Nosso peixe-herói precisa então de muita maturidade, de fé em si mesmo, além de mandar o Bruno calar a boca mais uma vez, para alcançar o amigo novamente. E é na hora mais crítica onde toma outra decisão: a de se revelar para o mundo pelo qual se apaixonou.
Luca é uma história sobre pessoas diferentes sendo aceitas, e aceitando a si mesmas. Mas é ao mesmo tempo uma história sobre lembrar da infância, dos arrependimentos e das maravilhas que passamos em férias despreocupadas, descobrindo valor em amizades inesperadas.
É também uma história sobre o nosso coração e sobre memória. Tudo em Luca nos fala de um passado que, mesmo sendo totalmente italiano, pode ser meu e seu sem problemas.
E fala sobre o esforço de calar a voz do medo e ouvir a voz da coragem.
(Imagem de Capa - Divulgação - Walt Disney Company)