A Mãe do Cinema
Quando falamos sobre os primórdios do cinema, os primeiros nomes que vêm à nossa cabeça geralmente são os irmãos Lumièrie e George Méliès. Bom, é isso o que os livros e a faculdade de cinema ensinam, porém há um nome muito importante que desencadeou tudo.
De fato, os Lumièrie deram o pontapé inicial quando criaram o aparelho que chamaram de Cinematógrafo. Entretanto, a ideia era apenas documentar o cotidiano — como a natureza, o trabalho ou um trem voltando para a estação —, do que uma maneira de contar histórias.
Nove meses antes dos irmãos realizarem sua apresentação ao público, eles decidiram mostrar sua invenção a um grupo pequeno, com convidados escolhidos a dedo. Entre eles, estava a mulher que seria a primeira diretora da história do cinema.
Alice Guy, na casa de seus vinte e poucos anos, até então trabalhava como secretária na empresa de fotografia Léon Gaumont. Seu chefe foi convidado à apresentação exclusiva dos irmãos Lumièrie, e ela o acompanhou junto a sua equipe. Enquanto Alice assistia às imagens de “A Saída dos Operários da Fábrica Lumière”, seus olhos vislumbram o potencial daquela nova tecnologia.
A jovem já era familiarizada com narrativas, pois adorava livros e até mesmo já fez aulas de teatro. Então, ela pensou: “e se eu contasse uma história?”. Mal sabiam eles, que uma revolução estava prestes a acontecer depois daquele dia.
O primeiro filme ficcional
Léon Gaumont havia adquirido suas próprias câmeras para comercializar, e Alice para ajudar nas vendas, apresentou sua ideia e pediu permissão para usar o aparelho para filmar algumas cenas.
Seu chefe não convenceu-se de início, mas no dia seguinte a futura cineasta encontrou o aparelho em cima de sua mesa com um bilhete: “contanto que você não esqueça a correspondência." E foi assim que, Alice Guy, em 1896 lançou o primeiro filme ficcional do mundo.
“A Fada do Repolho”, 1896 (Foto: Gaumont Film Company / Divulgação)
Produzido, escrito e dirigido por ela mesma. O curta intitulado “A Fada do Repolho”, traz cenários, cortes, efeitos especiais e uma narrativa de um minuto, inspirada em uma antiga lenda francesa.
Seu primeiro filme comercial foi um sucesso para a época. A conquista a levou a ser promovida de secretária à chefe de produções cinematográficas de Gaumont. A revolução do cinema havia começado e desde então, a imaginação era o limite.
Pioneirismo
Alice Guy, desde o início, era apaixonada em explorar todas as possibilidades da nova arte. Através das lentes a jovem viu o futuro. Ela criou uma linguagem cinematográfica usada até hoje, como planos e movimentos de câmeras.
Um exemplo é o famoso close-up, usado pela primeira vez em 1906 no filme “A Madame Tem Seus Desejos”. A técnica garante um efeito dramático em cenas, e por muito tempo foi creditada ao cineasta D. W. Griffith. Porém ele só lançou seu primeiro filme quatro anos depois.
A cineasta era uma artista que procurava inovar. Ela foi a primeira a usar efeitos especiais. Aliás, George Méliès nunca ocultou sua influência. Também foi a primeira a colorir os filmes, além de gravar com o fonógrafo vinte anos antes do cinema falado.
Sua maior produção e também seu maior sucesso, surge no mesmo ano de 1906, quando lançou “A Vida de Cristo”. Um curta-metragem de 34 minutos onde ela explorou a linguagem cinematográfica como ninguém havia feito.
O filme requereu uma grande produção, sendo considerado o primeiro longa-metragem que serviu como base para os blockbusters no futuro.
Alice Guy no set de “A Vida de Cristo”, 1906 (Foto: Arteplex Filmes / Divulgação)
Alice Guy também foi a primeira a gravar com um elenco totalmente negro (“Um Tolo e Seu Dinheiro”, 1912), numa epóca onde atores brancos pintavam o rosto para representar negros nos filmes, algo que continuou a ocorrer por muito anos.
A pioneira usava a arte para também apresentar temáticas feministas na época. Um de seus filmes mais conhecidos, que serviu como um tapa na cara da sociedade, chama-se “As Consequências do Feminismo”. Uma comédia, na qual os sexos trocam de “papéis”.
Alice mostra os homens realizando atividades ligadas comumente às mulheres, enquanto elas se divertem no bar e assediam seus parceiros. Uma sátira do que as pessoas, especialmente os homens, acreditavam ser o objetivo do feminismo.
Antes mesmo de Hollywood
Alice Guy conheceu o cinegrafista Herbert Blaché, seu futuro marido, em uma viagem de negócios. E depois de casados, os dois mudaram-se para os Estados Unidos.
Em 1910, já na América, Alice abriu sua própria produtora, chamada Solax. Suas produções foram um sucesso, e na época Alice já era a única mulher ganhando 25 mil dólares por ano no país. Posteriormente, ela montou seu próprio estúdio em Fort Lee, no valor de 100 mil dólares, o que equivale a mais ou menos 3 milhões hoje em dia.
A cineasta tinha uma frase preferida: “seja natural”. Sua máxima constava apenas de duas palavras, mas já era o suficiente para servir de incentivo aos seus atores. Tanto que uma placa com os dizeres estampava a parte da frente de Solax.
Em 1913, ela colocou seu marido como presidente de sua empresa. Dessa forma, Alice dedicava-se exclusivamente a escrever e dirigir seus filmes, enquanto Herbert seria responsável pela parte burocrática.
No entanto, três meses depois, — provavelmente incomodado em trabalhar para sua esposa —, ele pede demissão e abre sua própria empresa, a Blaché Features.
Os dois passam a trabalhar juntos em ambas as companhias. Mas com o tempo o estúdio de Herbert ganha mais atenção da indústria cinematográfica, e Solax se afunda.
Depois de perder sua produtora, em 1915, Alice assina um contrato para trabalhar como diretora na Blaché Features. Na época, Guy trabalhou com estrelas como Olga Petrova e Claire Whitney.
Alice Guy em 1912, a pioneira inspirou grandes nomes como o cineasta Hitchcock (Foto: Zeitgeist Films / Kino Lorber)
A história a esqueceu
O casal de cineastas separou-se oficialmente no início dos anos 20. Alice voltou para sua terra natal e notou que todo seu trabalho caiu no esquecimento.
Por falta de apoio financeiro, ela teve dificuldades em gravar novos filmes e assistiu sua estrela se apagar. Desistiu de continuar tentando e passou a se dedicar à escrita de histórias infantis, assinando seu trabalho com pseudônimos masculinos.
Ao todo, foram mais de mil filmes produzidos por Alice Guy em toda sua carreira. De westerns, comédias, dramas à ficção científica.
Infelizmente, apenas 130 deles foram encontrados até hoje. Com o passar dos anos, grande parte de seus filmes foram creditados a homens, incluindo Herbert Blaché e Léon Gaumont. E outros levavam apenas o nome da produtora.
Com o auge de Hollywood e o cinema se transformando em uma grande indústria, o trabalho de muitas pioneiras mulheres, além de Alice Guy, foram apagados da história. Após o lançamento póstumo de sua autobiografia, escrita no final dos anos 40 e publicada apenas nos anos 80, sua história foi relembrada.
Na obra, além de narrar sua jornada, Alice detalha uma lista dos filmes que produziu na esperança de recuperar seus devidos créditos.
Justiça histórica
Muitos aficionados por cinema vêm tentando recuperar pioneiras como Alice nos últimos anos. Um exemplo é o mais recente documentário de 2018, “Alice Guy-Blaché: A História Não Contada da Primeira Cineasta do Mundo".
Narrado por Jodie Foster e dirigido por Pamela B. Green, a obra resgata brilhantemente a história da mãe do cinema. Com uma pesquisa profunda, Green une imagens de acervo a entrevistas com artistas do cinema, para assim contar o desenvolvimento crucial de Alice Guy para a sétima arte.
O documentário está disponível na plataforma Telecine Play para quem quiser conferir. E além disso, muito em breve teremos uma adaptação baseada na vida dessa incrível mulher.
Jean-Jacques Annaud dirigirá uma série sobre a pioneira, baseado no livro “Alice Guy - la première femme cinéaste de l'histoire (Alice Guy - A Primeira Mulher Cineasta da História)” de Emmanuelle Gaume. Annaud juntou-se à Wild Bunch TV e 68productions para desenvolver a série, que contará com um elenco internacional.
“Eu quero tirá-la do esquecimento que ela caiu. Contar essa história é também uma maneira maravilhosa de prestar homenagem ao meu ofício”, declarou o diretor.
Esperamos que assim Alice Guy não só recupere seus créditos, como também reconquiste o seu espaço e o direito de carregar o título que sempre lhe pertenceu: a pioneira do cinema.
Imagem de capa - Alice Guy no final do século XIX (Foto: Apeda Studio New York)
Este artigo foi escrito por Bruna da Cruz Souza e publicado originalmente em Prensa.li.