Mãe, quem é Erykah Badu?
Esses dias, enquanto a gente via a lua crescente saindo de trás do sino da igreja, lá pelas horas que geralmente ele costuma badalar, minha filha me perguntou:
- Quem é Erykah Badu?
Nos segundos antes da minha boca abrir, minha mente se contorcia num diálogo causticante consigo: “Como assim minha filha não sabe quem é Erikah Badu? O que eu fiz de errado? Sim por que eu só posso ter feito algo de errado”. Nada justifica ela não ter o registro Erykah Badu gravado em sua mente, nada, nem mesmo o fato de ela ter apenas 15 anos.
Veja, nós estamos falando de uma menina que aos 2 aninhos tinha por filme preferido o simbolicamente recheado ‘As crônicas de Nárnia’, aos 4 anos – na sua primeira experiência com o clássico Tubarão – ela soltou a seguinte pérola ao ouvir a trilha do protagonista:
- Nossa mãe parece que o tubarão vai vim e atacar a gente.
Por favor, aos 4 anos de idade, num domingo as 8h da manhã, tem ideia do que é isso? Mesmo que ela ainda não tivesse idade para entender que aquele filme fazia, na opinião de sua mãe, o travelling in e zoom out mais bem executado da história do cinema, arrisco a dizer que Irmin Roberts deve ter ficado orgulhoso. Ela entendeu com perfeição o significado da ameaça.
Lá pelos 7, sua atriz favorita era a jovem Julie Andrews correndo pelas colinas da cidade natal de Mozart. Quando eu me perdi? Será que foi entre o Jeremy Jordan, Sutton Foster e toda a galera da Broadway? Nos Beatles, que pra ela é tão recente quanto eram no 60’s, tenho certeza que não foi. Ah, provavelmente foi no meio do Indie russo, que sinceramente eu segui sem entender. Normal, tinha que ter algo da geração dela que faria jus aos meus recentes e, diga-se de passagem, poucos cabelos brancos.
“Quem é Erykah Badu” fez disparar, dentro da minha mente os motivos pelos quais eu ainda não havia feito a ponte: “Maria Clara – Badu”. Erykah Badu, talvez, não seja o tipo de coisa que se explica, por que tem certo tipo de sintonia transcendental na voz, na performance, no transbordar do ser dela através da vibração em cada nota emitida por ela. E nem precisa ser religioso para entender o que tô dizendo, só por favor não negue a ciência e todos os hormônios que inundam o cérebro toda vez que “A música” toca.
É ouvindo a doce flauta de seu amado Govinda que as Golps dançam em pura harmônia como se todas fossem uma e uma fosse todas, completamente fundidas e integradas com Krshina em bhakti. Mas é obvio que não devemos acreditar em tudo que se ouve por ai, sendo assim, faço o convite da primeira experiência de transformar algo banal, como, por exemplo, lavar a louça. Porque claro, qualquer música com o por do sol perfeito, seja na Praça Por do Sol da Vila Madalena ou em Bali, te convida a se emocionar. Mas não, louça. Isso requer um dom muito especial, transformar o ato de lavar a louça em um instante que tenha valido mais que o prazer de ver a louça e a pia limpinha.
Eu sugiro a louça do café da manhã após o fim de semana, depois que você já tiver se deleitado com seu bom e amado café de torra clara, comido um negócio que você gosta, dado uma fuchicada nas redes sociais, lido uma ou mais páginas de um bom livro, feito carinho num gato que resolveu sair de dentro dum armário e veio te dar aquela roçada de rabo na perna, sabe? Então, depois disso tudo, tira a mesa, organiza a louça antes de lavar – se tiver alguma coisa que tá meio grudada coloca uma água pra ferver para ajudar a soltar a mancha.
Fone de ouvido, a música é ‘Next Life’, eu sugiro a versão ao vivo de Baduzim 1997, o volume alto o suficiente para que sele um pacto entre a porta do ouvido e a porta da boca dela. Essa versão tem mais ou menos uns 12 min. Tempo o suficiente pra lavar a xícara, o prato, os talheres sujos da panquequinha de banana com aveia ou da faca de manteiga que foi usada para passar no pão de queijo quentinho e de tão quente a manteiga escorreu e pingou na mesa. Da tempo de tudo isso e ainda tirar aquele lixinho que sempre fica no ralo. Nesse momento a música já deve ter feito os primeiros efeitos, já deve ter penetrado suficiente no seu ser sutil a ponto de criar espaço para o minuto 6. Lembra do pacto; ouvido/boca dela e nada mais. Não pule etapas ouça até lá, se dê esse prazer, você merece.
A partir daí se a conexão foi feita da forma como esperada, você já entendeu que emoções não mentem e vai vivenciar uma série de improvisos celestiais entre Badu e coro. Não tenha medo, emoções não mentem, acredite e deixe ela ser sua guru e te levar para passear em suas frequências. Nesse momento ela se instala de vez e torna-se parte da psique.
Se você chegou até aqui, dê um passo pra trás, deixa respirar, contemple o residual das ondas sonoras ainda resvalando por todo o corpo junto com o sobe e desce do ciclo sanguíneo em suas veias e contemple a maravilha de ter completado bahir shaucha ao ver a louça e a pia reluzindo, e também cumprido antah shaucha, deixando sua mente e seu ser tão alinhados que estralar os dedos atinge uma precisão cirúrgica. Se tudo isso acontecer em um dia de seu azul e sol brilhando, considere-se um milionário.
Então minha filha, dito isso, vamos fazer o seguinte, entre muitas das coisas que já colecionamos juntas e das muitas que ainda vamos colecionar – tipo a tão aguardada tatuagem igual ‘I’M A DREAMER’, Badu entra no baú dos nossos tesouros. Como legado deixo, se você quiser, a música ‘Ye Yo’, também desse álbum. Com essa música sua mãe já riu sozinha, lágrimas, muitas lágrimas me lavaram de dentro pra fora. Já ouvi essa música as 6h da manhã vendo a lua minguante que insistia em não minguar no Oeste. Já ouvi vendo a lua completamente cheia ocupando seu lugar de luzeiro noturno, já ouvi acompanhada de gente, dos gatos, da criança da varanda do prédio da frente, já ouvi lavando louça, claro, e o banheiro também, já ouvi no metrô lotado de manhã, já ouvi na rua e nem me toquei que tava cantando alto (sempre acontece, sempre me empolgo), já ouvi nas mais diversas situações.
Hoje te dou ela de presente, para te acompanhar como uma oração, que ela esteja na trilha sonora da sua vida, nos lugares que você visitar, nas pessoas que você conhecer, que ela – a música – cumpra sua função de comunicar aquilo que as palavras turbinadas pela força da melodia fazem, traduzir o que não conseguimos ver a olho nu, do gosto que nossas papilas gustativas não compreendem. E assim minha filha, te apresento Erica Abi Wright, Erykah Badu, Miss Badu e sempre que você tiver alguma pergunta volte, a mãe se alegra em poder responder todas elas.
Este artigo foi escrito por Gabriela Dias e publicado originalmente em Prensa.li.