Maio Vermelho: Estado dá tiros e conta corpos nas comunidades
Falta Estado nas comunidades. É uma realidade nacional, inclusive em cidades menores. Nas grandes cidades e nas metrópoles, principalmente, as manchetes falam por si. É onde a realidade é mais evidente.
Maio termina com três tragédias: duas pela ação do Estado e outra pela sua omissão, que é uma constante.
No Rio de Janeiro mais uma ação violenta. Fora da estrada, a Polícia Rodoviária Federal e o BOPE (“Tropa de Elite”) protagonizaram uma operação com 23 mortes. Número oficial. Na estrada, a PRF improvisou uma câmara de gás e matou Genivaldo de Jesus, 38 anos, em Sergipe.
A justificativa dos órgãos de segurança foi a concentração de criminosos de outros estados na Vila Cruzeiro e a necessidade de coletar “dados de inteligência”. Coletou corpos. Armas também. Porém, não havia mandados de prisão para pelo menos 16 das vítimas. Outras, sequer tinham passagem na polícia.
É o caso do ex-militar da Marinha, Douglas Costa Inácio, 23 anos. Há também uma cabeleireira de 41 anos, Gabrielle Ferreira da Cunha. No momento em que escrevo, as circunstâncias da morte dela ainda não estão claras. Informações do jornal O Dia revelam que o disparo foi feito de longa distância.
De qualquer forma, a operação “inteligente” não vai reduzir a criminalidade e nem o deslocamento de criminosos. Assim como todas as anteriores.
Quanto à morte de Genivaldo, não há justificativa possível, ainda que falsa.
Soterrados
A outra tragédia aconteceu Grande Recife. Foram 128 mortes confirmadas e mais de nove mil desabrigados, além de feridos. Chuvas torrenciais provocaram a mesma tragédia no sul da Bahia (final de 2021) e no Rio de Janeiro.
As principais vítimas moram em comunidades em locais de risco. Até um leigo no assunto percebe a precariedade das moradias.
O Poder Público faz de conta que não é com ele. Quando ocorre a tragédia, faz a mesma coisa das ações policiais: conta corpos. O tiro, neste caso, já foi dado pela omissão. Daí aparecem Defesa Civil, Exército, Bombeiros, políticos, imprensa. Depois, a vida segue.
Até que outra chuva ou acidente, como um incêndio, lembre a todos do eterno problema da falta de moradias nas cidades, onde se concentram 84% da população (Embrapa, 2017) e proliferam condomínios de luxo e especulação imobiliária. Detalhe: a área urbana total no país é de apenas 0,63%.
Terra Prometida
O Estatuto da Cidade está com quase 21 anos. Tem como um dos temas centrais a moradia e se insere na questão da reforma urbana, cujo objetivo é promover o acesso à estrutura e aos benefícios das cidades a todas as camadas da população. Seus dispositivos influenciam e são reproduzidos em Planos Diretores, Leis de Uso e Ocupação do Solo e outras leis de planejamento urbano.
E fica nisso. O papel aceita as soluções para os desafios de acomodar com dignidade os 180 milhões de habitantes das cidades. Os dispositivos de política urbana são vistos, revistos, reapresentados. Implantá-los exige vontade política, produto raro para a questão da moradia como em outras.
Os problemas não resolvem de per si. Muito menos quando a polícia invade ou a chuva carrega. É preciso Estado, políticas públicas, interesse e vontade ou o país vai assistir continuadamente tragédias, milhares de vítimas, repressão mal planejada e pressão internacional. Eventos climáticos extremos estão mais frequentes, o que também já estava previsto.
Vácuo inexistente
Sem o Estado, a miséria toma conta das comunidades. As milícias e o narcotráfico também. Organizações criminosas não estão lá para proteger ninguém e nem beneficiar moradores. Exploram o espaço relegado pelo Estado, que depois usa a expansão delas para justificar as ações violentas. É o cachorro correndo atrás do próprio rabo. O resultado todos viram.
As abordagens violentas são rotineiras, proliferando em imagens que revoltam.
A crise se arrasta desde meados da década passada e agravou sobremaneira os problemas urbanos e a criminalidade. As comunidades inflaram com as famílias que fugiram do aluguel.
Improviso e despreparo formam um casal problemático. Para piorar, essa relação já durou demais.
Até quando?
Este artigo foi escrito por Renato Assef e publicado originalmente em Prensa.li.