“Mamãe Falei” bobagem
Mamãe Falei ignora horrores da guerra ao mencionar prazeres possíveis com ucranianas - Foto Anna Tis - Pexels
Este artigo está alocado na seção “Política”, mas isso é por força semântica. Em verdade, a contar pela vontade das mulheres, poderia estar em “Bizarrice”, “Absurdos”, “Além da Imaginação”, “Esdrúxulo”, “Estapafúrdio”, “Escalafobético” etc. Contudo, seções semelhantes seriam apropriadas a sites de humor e de bobagens inconsequentes, não de jornalismo sério.
Recentemente, este site, Prensa, publicou artigo em que elenca uma série de fatos deploráveis. O link está ao fim deste. Nele, posturas execráveis são elencadas como eventuais características da civilização atual. Certamente podem ser classificadas assim porque têm força midiática maior. Arranham a dignidade humana a ponto de causar reações críticas das mais diversas.
Por outro lado, o problema é que tais posturas execráveis são hoje também divulgáveis mais que antes. Então, o que ontem se limitava às paredes de botequins ou de salas de famílias hoje se alastra pela internet como rastilho de pólvora. No caso do deputado Arthur do Val, o rastilho saiu da Ucrânia e avançou mar adentro até chegar ao Brasil.
O rapaz aqui é chamado de deputado, mas é quase ex-deputado se se contar a esperança e o empenho de muitas mulheres e de provavelmente alguns poucos homens pensantes dignos.
“Mamãe Falei” já é erro em si
“Mamãe Falei” é apelido de Arthur Moledo do Val, deputado estadual por SP que passou por vários partidos em pouquíssimo tempo de vida parlamentar. Para analistas políticos, apenas esse fator já seria suficiente para desenhar a postura do cidadão. Entretanto, outros fatos marcantes constroem esse desenho com maior realidade.
“A começar pela própria visão que o deputado tem sobre esses fatos”, diz Leopoldo Lopes, livre pensador morador da Capital de S. Paulo. E complementa: “esses fatos marcantes são sempre feitos de violência, desrespeito, xingamentos etc.”. Uma dessas situações deu início a vias de fato, a briga de rua dentro da Assembleia Legislativa, não se concretizando por ação de seguranças e outros parlamentares.
Como Lopes destaca, essas situações são simples, corriqueiras, normais segundo a percepção de Do Val. Entretanto, conforme análise de todos os cientistas políticos, são fatos de mostram uma personalidade problemática, desprovida de noção de bom senso por representar o estado mais importante economicamente falando.
Viagem errada
Boa parte dos brasileiros se pergunta por que o rapaz-ainda-deputado esteve no país em guerra. Sua função como deputado é salvaguardar interesses do estado que representa. Até onde se sabe, sua presença na Ucrânia teve um objetivo: produzir coquetel molotov (ele mesmo publicou foto com essa legenda). Pelo teor dos áudios vazados, imagina-se outro objetivo paralelo.
Segundo sua assessoria e suas próprias palavras, o objetivo oficial teve caráter humano. Estaria lá para prestar apoio a um povo sofrido. “Não há comunidade sofrida no país dele?”, perguntam muitos que participam de discussões virtuais; “Caráter humano ou ‘humana’?”, perguntam outros.
O erro anunciado
Justificando-se o título deste subcapítulo, “Mamãe Falei” já constitui equívoco na própria grafia. A palavra “mamãe” funciona como vocativo; nesse caso, deveria estar sucedida por vírgula segundo regras gramaticais (“Mamãe, falei”).
Entretanto, há duas considerações a fazer sobre isso:
O conceito de “gramática coloquial” permite esse desarranjo
O erro gramatical é o menor dos problemas que envolvem a personagem central deste artigo
O erro maior: rastilho em forma de áudio
Áudio produzido pelo deputado assumiu a função do rastilho de pólvora mencionado acima. Esparramou-se pela internet como ondas em lagoas provocadas por queda de pedra. No caso, não foi pedra, mas um meteoro.
O conteúdo do áudio não será reproduzido aqui por vários motivos:
A ojeriza que causa
O caráter abjeto de que se compõe
A execração em que se embasa para se referir às mulheres em geral, às ucranianas em particular
O mais prático dos motivos é, no entanto, o fato de o conteúdo já ter sido publicado em centenas de veículos. Efeito do mesmo “rastilho”. Portanto, o nome do deputado já teve publicidade em demasia. Aliás, publicidade arquitetada, segundo muitos profissionais de marketing, que é normal na postura do parlamentar.
Mamãe, socorro
É provável que todas as leitoras e leitores da Prensa já tenham conhecimento do conteúdo do áudio. Contudo, na hipótese de haver algum que desconheça, basta se inteirar da lista de efeitos abaixo que causou na vida do “rapaz-ainda-deputado”.
Sem namorada
O site das organizações Globo informou a reação de Giulia Blagitz, comunicando que esta foi quase imediata ao “rastilho”. O “rapaz-ainda-deputado” sobrevoava o oceano em viagem de volta da Ucrânia. Quando chegou ao Brasil, já estava sem namorada.
“Em tempos de comunicação fácil e de construção egocêntrica de imagem, não se sabe se a quebra da relação é real, mas é o mínimo que se espera de uma mulher”, afirmou Mel Hippchen, neuropsicopedagoga brasileira radicada na Alemanha e defensora intensa do sentido de empoderamento feminino. Essa visão representa a esmagadora maioria das mulheres que teve conhecimento mínimo do conteúdo do áudio.
Sem apoio político
O ex-juiz e atual pré-candidato à Presidência da República, Sérgio Moro (Podemos), é partidário do “rapaz-ainda-deputado”. Sem mencionar o nome do colega, anunciou que não subiria no mesmo palanque de alguém que humilha o caráter feminino.
Moro disse: “Jamais comungarei com visões preconceituosas, que podem inclusive ser configuradas como crime. Jamais dividirei meu palanque e apoiarei pessoas que têm esse tipo de opinião e comportamento. Espero que meu partido se manifeste brevemente diante da gravidade que a situação exige".
Quase sem partido
Rápida e necessária nota divulgada por Renata Abreu, deputada federal e presidente do Podemos, segue as diretrizes que toda sociedade minimamente respeitável espera. "Gravíssimas e inaceitáveis são as declarações do deputado estadual Arthur do Val [...]. Não se resumem ao completo desrespeito à mulher, seja ucraniana ou de qualquer outro país, mas de violações profundas relacionadas a questões humanitárias.”
Sem candidatura
O próprio “rapaz-ainda-deputado” comunicou que se retirou da pré-candidatura ao governo do estado de S. Paulo. “Faço isso por entender que [...] é necessário preservar o árduo trabalho de todos aqueles que se dedicam na construção de uma 3ª via”.
Sem moral
Lilia Moritz Schwarcz é antropóloga, historiadora, professora da USP e de Princeton, colunista do Nexo, curadora convidada do Masp e admirável produtora de conteúdo relevante nas redes sociais. Publicou expressivo repúdio sobre o caso em sua página de Instagram.
“Tem causado repulsa e revolta o áudio divulgado pela imprensa onde Artur do Val, pré-candidato ao Governo de São Paulo, teria feito uma série de afirmações sexistas sobre as ucranianas, ao invés de mostrar solidariedade diante do sofrimento da população de uma forma geral.
O deputado, integrante do Movimento Brasil Livre, YouTuber e empresário brasileiro filiado ao Podemos, viajou à Ucrânia para acompanhar o cenário da guerra e gravou alguns áudios. Neles, o pré-candidato a governador pelo partido de Sérgio Moro, teria afirmado que as ucranianas são ‘fáceis’ de pegar por serem pobres — e que a fila de refugiados da guerra tem mais mulheres bonitas do que a ‘melhor balada do Brasil’.
Lilian continua
Em outro áudio explica que teria usado seus 730 mil seguidores no Instagram para se aproximar de mulheres ucranianas: ‘Elas olham [para ele, Arthur] e vou te dizer: são fáceis porque elas são pobres. E aqui, cara, minha carta do Instagram, cheio de inscritos, funciona demais. Funciona demais. Depois eu conto a história’. ‘Não peguei ninguém, mas eu colei em duas minas, que a gente não tinha tempo, em dois grupos de minas, e assim, é inacreditável a facilidade’.
Arthur que se autodeclara defensor de ideias liberais, usa de seu canal do YouTube MamãeFalei para divulgar sua pauta, segundo sua definição, da direita conservadora.
Não é preciso ser feminista para avaliar que os áudios do parlamentar são repugnantes em qualquer situação. Mas no contexto da guerra, causam ‘nojo’ (e me perdoem o termo) as afirmações sobre as mulheres refugiadas e policiais da Ucrânia. Verbos como ‘colar’, ‘pegar’ revelam o nível desse político. Revelam também como o machista viaja sempre a serviço do seu machismo.”
Mais denúncias
No momento em que este artigo estava sendo encerrado, um vídeo do canal Meteoro Brasil adequou-se perfeitamente ao tema. Trata-se de denúncias contra o rapaz-ainda-deputado a respeito de possível assédio sexual contra jovens estudantes do Paraná.
O vídeo foge da possibilidade de as pessoas tidas como vítimas estarem aproveitando o momento catastrófico do rapaz-ainda-deputado para fazer denúncias vazias. A advogada Tânia Mandarino, citada no vídeo, alega que boletins de ocorrências foram abertos para investigação dos fatos.
O rapaz-ainda-deputado
O rapaz-ainda-deputado conversou com a imprensa assim que desembarcou no aeroporto de Guarulhos, Grande São Paulo. Taiane Daniel, produtora de conteúdo para redes sociais, fez exercício de imaginação: “Fico pensando nos impropérios que alardeou ainda no avião, pois foi ali que certamente soube do vazamento do áudio. Se falou tudo aquilo sobre mulheres, sabe-se lá o que deve ter falado sobre o ‘amigo’ participante do grupo que divulgou o áudio”.
O rapaz-ainda-deputado assumiu autoria dos áudios. Para sociólogos, não havia outra postura a apresentar, o que significa que Do Val optaria por negar se houvesse clima minimamente ajustado para isso. Prova dessa possibilidade é prevista em parte de sua fala: "houve um mal-entendido [...] pessoas estão misturando os áudios com outro contexto".
Ainda amenizou um pouco: "Foi errado o que eu falei, não é isso que eu penso. O que eu falei foi um erro, em um momento de empolgação", disse.
Uma carta para o rapaz-ainda-deputado
Jamil Chade é colunista do UOL. Um dia depois de ter conhecimento do conteúdo do áudio, comoveu seu público e quem mais se deparasse com suas palavras num texto especial. O jornalista faz coberturas internacionais para veículos nacionais e estrangeiros, nas quais é especialista. Já passou por dezenas de países, incluindo os em guerra.
A lista de seus temas é longa, mas se baseou no que viveu com refugiados e vítimas de conflitos nos últimos 20 anos para pintar o quadro antevisto em seu texto. Chamou-o “Carta para Arthur do Val: a condição feminina na guerra e na paz”. Leitoras e leitores Prensa têm versão belamente narrada neste link.
Para estruturar em definitivo o peso da responsabilidade de quem usa internet, vocês podem ler a matéria publicada neste site, A civilização sob suspeita, mencionada acima.
Este artigo foi escrito por Serg Smigg e publicado originalmente em Prensa.li.