Mamãe Falei na Ucrânia, o puro suco da misoginia
(Foto: Reprodução)
O ano é 2022. No Leste Europeu, um dos conflitos com potencial bélico mais perigoso do século XXI tem na Ucrânia seu palco de ações.
A Rússia de Putin põe em prática a capacidade bélica de seu país contra os ucranianos, que recebem poucas demonstrações de ajuda dos países membros da Otan e da União Europeia.
Em meio a este conflito, um deputado do estado brasileiro de São Paulo vai, possivelmente com recursos públicos, para o epicentro do conflito.
Entre tirar fotos com coquetéis molotov e fazer vídeos para seu canal no Youtube, um de seus feitos foi enviar áudios falando que ucranianas são “fáceis” de pegar por serem pobres, e que a fila de refugiados da guerra tem mais mulheres bonitas do que a “melhor balada do Brasil”.
Sim, a manchete é essa.
Um YouTuber disposto a ajudar (e assediar)
Os áudios, vazados por não se sabe quem, já estamparam as manchetes dos principais sites de jornais no Brasil. A jornalista Bianka Vieira, que publicou matéria na coluna da Mônica Bergamo, na Folha de São Paulo, reportou que a cúpula do MBL (Movimento Brasil Livre), do qual o Arthur do Val faz parte, analisa os áudios.
O conteúdo é ainda mais deplorável e misógino. Sob a desculpa de que estaria em uma missão de ajuda aos ucranianos, reforçando em vídeos ao lado de Renan Santos, coordenador do MBL, a importância de sua viagem (talvez, para se justificar junto ao seu eleitorado, ou mesmo à sua audiência nas mídias sociais), o Mamãe Falei fez uma série de áudios em que exalta a beleza das ucranianas que ele gostaria de “pegar”.
“Mano, estou mal. Passei agora, 4 barreiras alfandegárias, duas casinhas pra cada país. Eu contei, são 12 policiais deusas. Que você casa e faz tudo que ela quiser. Eu estou mal cara, não tenho nem palavras para expressar. Quatro dessas eram minas que você se ela cagar você limpa o c* dela com a língua. Inacreditável. Assim que essa guerra passar eu vou voltar para cá”
Integrantes do MBL afirmam que estes áudios não foram mandados para seus respectivos números no aplicativo de mensagens Whatsapp. Contudo, o próprio Arthur do Val já teria demonstrado preocupação com as consequências de suas falas, segundo um parlamentar da Assembleia Legislativa de São Paulo entrevistado na coluna da Mônica Bergamo.
Em outro áudio, Arthur diz o seguinte:
“Vou te dizer, são fáceis, porque elas são pobres. E aqui minha carta do Instagram, cheia de inscritos, funciona demais. Não peguei ninguém, mas eu colei em duas ‘minas’, em dois grupos de ‘mina’, e é inacreditável a facilidade”
Você pode ouvir os áudios na íntegra, se tiver estômago para isso, neste link.
Talvez o resultado mais imediato da repercussão dos áudios seja o rompimento anunciado por Sérgio Moro com o deputado, que concorre ao governo de São Paulo.
Em nota, o ex-juiz (farofa de candidato à presidência) diz repudiar os áudios de Arthur, respeitar incondicionalmente as mulheres em geral e promete jamais dividir palanque com quem tem esse tipo de opinião.
As incríveis aventuras do homem branco pelo mundo
Arthur do Val não é o primeiro e nem será o último homem branco brasileiro, de classe média e alta, vivendo suas incríveis aventuras pelo mundo.
Na verdade, este espécime da fauna nacional vem destilando sua misoginia há muito tempo, e exemplos disto não faltam. Para não ir muito longe, rememoro 2 ocasiões do nosso tempo presente.
Em 2018, em meio às festividades da Copa da Rússia, torcedores brasileiros viralizaram com um vídeo em que cantam “b***** rosa, essa é bem rosinha” ao redor de uma mulher loira, provavelmente russa. Eles ainda insistem para que ela repita as mesmas palavras.
Trechos do vídeo machista de torcedores brasileiros na Rússia (Imagem/reprodução: Facebook)
A repercussão do caso gerou, nos participantes, reações diferentes. O engenheiro civil Luciano Gil, que aparece no vídeo, acusou as pessoas que criticavam o ato misógino de estar “acabando com a vida” daqueles homens.
Ao portal UOL, Luciano diria o seguinte: “Somos pais de família, trabalhadores e vocês estão acabando com a vida da gente… Quem está brincando carnaval exagera um pouquinho na bebida e às vezes passa do ponto. Peço desculpas às mulheres que possam ter se sentido ofendidas, mas estão transformando um copo d’água em uma tempestade”.
O autor da postagem do vídeo, Cristiano Santos, contudo, diria em suas redes sociais se sentir envergonhado, pedindo desculpas às mulheres que eventualmente tinham assistido ao vídeo.
Em 2021, mais um caso ridículo, acontecido em outro continente, o africano. No Egito, um vídeo feito com ares de “brincadeira” viralizou, exibindo a cena constrangedora de um médico brasileiro de Porto Alegre, Victor Sorrentino, fazendo piadas de cunho sexual com uma vendedora local.
Enquanto ela lhe mostrava um papiro, o “aventureiro” dizia, em português: “Vocês gostam mesmo é do bem duro, né?”. Sorrentino compartilhou sua “piada” com os mais de 1 milhão de seguidores à época.
A moça não entendeu, apenas riu, e continuou suas explicações sobre um dos materiais de uso dos antigos egípcios mais importantes da história.
O caso repercutiu e o governo egípcio se mobilizou pela prisão do médico, que aconteceu em 31 de maio de 2021. Sua soltura, no dia 6 de junho daquele mesmo ano, veio apenas com um pedido de desculpas oficial, tendo passado uma semana detido no Egito.
O “misógino vítima”, um espécime abundante na fauna brasileira
Sorrentino chora em live. Uma vítima (só que não). (Imagem/reprodução)
Há uma linha que une estes dois casos, e que, com certeza, chegará até o deputado/youtuber Mamãe Falei.
Quando os vídeos repercutiram avassaladoramente, e a opinião pública condenou as atitudes reproduzidas, os misóginos vestiram o manto dos mártires e se identificaram como vítimas do “exagero” dos outros.
Luciano Gil, o da “b***** rosa” na Rússia, lembrou o que ele mesmo esqueceu ao gravar o vídeo. Que era pai de família, trabalhador, que estava brincando, como num carnaval.
No Egito, o médico brincalhão chorou por diversas vezes em live no Instagram e pediu desculpas aos seguidores, vestindo uma camiseta preta com a frase “pai pra toda obra”. Mais um que lembra da família, tarde demais.
Enquanto choram, pedem respeito às famílias e demonstram ser homens de bem, suas brincadeiras repercutem a misoginia que persiste na prática cultural dos homens brasileiros.
Pergunto-me: quanto tempo o Arthur do Val vai levar pra fazer o mesmo?
Este artigo foi escrito por Pablo Michel Magalhães e publicado originalmente em Prensa.li.