Maradona, aquele que não se foi
Imagem: Wikkicommons
“Se a versão for melhor que a realidade, publique-se a versão”. Essa máxima, com pequenas variações, ronda contadores de história de todo o tipo. Jornalistas, roteiristas, escritores, e mesmo um cidadão comum na hora de contar um “causo”. É frequente a tentação em passar adiante a narrativa que não só floreia como deixa mais saborosa a trama a ser contada. Tanto que até criaram uma expressão para atenuar a culpa: “licença poética”. Mas Diego Armando Maradona veio ao mesmo tempo resolver e complicar essa situação.
O podcast “Os últimos dias de Maradona”, um original do Spotify produzido pela Adonde Media, repassa algo que quem acompanha futebol (e talvez até quem não se ligue tanto no esporte) desconfiava. Isto é, que não havia como saber os limites entre personagem e pessoa física quando se tratava do maior jogador argentino de todos os tempos.
O mote do podcast é a morte de Don Diego e as investigações judiciais sobre o que de fato aconteceu para o desfecho terrível. Investigações, aliás, que ainda estão em curso. Contando com a voz e a autoridade de mais de 50 anos de jornalismo do tarimbado Juca Kfouri, acompanhamos uma história que poderíamos classificar como policial, mas que extrapola, e muito, o gênero.
O homem-mito, o mito-homem
“Os últimos dias de Maradona” usa o que uma narrativa cativante sabe oferecer - faz você se sentir na cena dos acontecimentos. A descrição de onde Maradona morava, como era seu cotidiano final, o impacto da notícia de sua morte em todos os envolvidos. Porém o podcast entrega mais. Consegue reproduzir pra quem ouve a proximidade que o mito portenho promovia em todos que cruzassem o seu caminho.
Por meio de cada episódio é quase palpável o sentimento de que Maradona era, antes e sempre, de carne e osso. Que sua estrela, fama, sucesso e devoção recebida - existe até mesmo uma Igreja Maradoniana - jamais conseguiram ocultar seu lado humano, com todas as tintas. E talvez isso seja um dos fatores de tamanha identificação de um povo com um ídolo esportivo. Como os deuses do Olimpo ou o Homem-Aranha, os grandes poderes traziam responsabilidades e revelavam fragilidades comuns aos mortais.
Arrisco dizer que um nó na garganta pode ser provocado várias vezes, como se sentíssemos a mesma emoção de Maradona e dos torcedores nos altos e baixos da vida do ex-jogador. Uma trilha musical perfeita, acompanhada de detalhes sensíveis (como a descrição de Diego acariciando a grama de um estádio como se estivesse se despedindo) são alguns elementos de potência narrativa que têm caracterizado os melhores podcasts.
Foto: Picrly
É tudo verdade, mesmo encenado
Toda a produção de “Os últimos dias de Maradona” está fundamentada num trabalho extenso de uma equipe de jornalistas que se dedicou, dentre outras coisas, a esquadrinhar a documentação do processo judicial que investiga as causas da morte. Só pra se ter uma ideia, eles ouviram mais de quatro mil mensagens de WhatsApp!
E daí veio também uma iniciativa interessante, já utilizada em documentários (como o excelente Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho): uma vez que vários áudios não apresentavam boa qualidade, a produção resolveu regravar os diálogos com atores brasileiros. Deixando claro por que fizeram essa escolha, serviram a audiência com mais fluidez sem abrir mão do reporte do real.
A conjunção de um experiente jornalista, um excelente trabalho de apuração, um arco narrativo bem redondo e um roteiro de proximidade com o ouvinte já resultaria em um ótimo trabalho qualquer que fosse o tema retratado. Em se tratando de um personagem como Maradona, o clichê é inevitável: o podcast é um gol de placa.
Este artigo foi escrito por Marcos André Lessa e publicado originalmente em Prensa.li.