Marília Mendonça e seu corpo
Estive em dúvida sobre o título deste texto. Por algum tempo, quase o chamei de O Corpo de Marília Mendonça. Depois percebi como era inadequado. Pois expressava exatamente o contrário daquilo que espero transmitir para as pessoas que lerem o que vem a seguir.
Quando Marília Mendonça morreu, pouco se falou sobre seu sucesso no meio sertanejo. Um meio predominantemente masculino. Não que não tenha se falado de sua carreira. Mas, sem dúvida, o que mais gerou repercussão foi seu corpo.
A cantora faleceu num desastre aéreo que a vitimou e a outros quatro passageiros: Albicieli Silveira Dias Filho, tio da artista; Henrique Ribeiro, produtor; Geraldo Martins de Medeiros Júnior, que pilotava o avião; e Tarcísio Pessoa Viana, copiloto. A primeira coisa que chamou a atenção de todos foi o seu corpo.
Porque imagens do resgate mostravam os bombeiros procurando as vítimas. Enquanto isso, a assessoria de imprensa da artista dava informações desencontradas. Que levavam o público a crer que ela havia sobrevivido. Telespectadores atentos, porém, reconheceram o figurino típico de Marília no resgate infrutífero mostrado ao vivo. Foi possível identificar suas roupas em uma parte descoberta de um cadáver retirado numa maca dos destroços.
Ali todos sabiam que aquele era o corpo de Marília Mendonça. E nesse momento, numa sexta-feira, 5 de novembro, todos tiveram a certeza de sua morte.
No dia seguinte, aquele corpo voltou a ser assunto enquanto era enterrado. O obituário da Folha de São Paulo foi profundamente infeliz ao afirmar que Marília nunca foi uma excelente cantora. E ao tecer vários comentários gordofóbicos sobre ela. Num deles, o jornalista Gustavo Alonso comenta que, “após brigar com a balança”, Marília “se tornou bela para o mercado”.
Em nenhum momento do texto de Alonso há o menor resquício de crítica ao tal mercado, que estaria obrigando Marília a emagrecer para ser considerada bela. O jornalista normaliza um cenário profissional gordofóbico, machista e desumano. E parece se aproveitar dessa normalização para se dar ao luxo de imprimir seus próprios preconceitos velados. Nada surpreendente para alguém que, semanas antes, havia adjetivado a ex-presidente Dilma Rousseff como um “zumbi” na mesma coluna da Folha de São Paulo.
No domingo, 7 de novembro, o corpo de Marília Mendonça voltou a ser assunto. Dessa vez em rede nacional. Em seu programa dominical na Rede Globo, o apresentador Luciano Huck promoveu um debate sobre a vida e a carreira de Marília Mendonça. Porém, o mais relevante que ele mesmo foi capaz de acrescentar foi uma recordação de semanas antes do acidente. Ao encontrar a cantora num palco, ao lado das colegas Maiara e Maraísa, o apresentador lembrou-se:
“Na verdade, vieram só metade das três no palco. Porque estavam as três magrinhas”
Evidentemente para Luciano, falar da perda de peso de uma mulher durante um encontro em homenagem a sua memória dois dias após sua morte é um elogio.
Na segunda, o corpo de Marília Mendonça seria alvo de mais um comentário tétrico. Em seu programa matinal na Globo, a apresentadora Ana Maria Braga divulgou cenas do último show da cantora em Sorocaba e lamentou:
“Ela fez tanto pra chegar nesse shape lindo, físico, né? Ela emagreceu, criando um caminho pra ela, que fazia sentido, com esse vozeirão. E, de repente, ironia do destino que morreria dali a quatro, cinco dias”.
Ana Maria não lamentou que Marília tivesse morrido aos 26 anos de idade. Não lamentou que ela tivesse morrido no auge do sucesso. Não lamentou que a artista tivesse morrido deixando um filho de menos de dois anos. A apresentadora lamentou que Marília tivesse morrido porque tinha acabado de emagrecer.
A exemplo de Gustavo Alonso, nem Huck nem Ana Maria fizeram quaisquer comentários sobre o fato de um ser humano precisar perder peso para ser socialmente aceito. Muito menos mencionaram que isto é algo nocivo e intolerável num mundo civilizado. Se passar a vida ouvindo esse tipo de comentário fez com que ela achasse que precisava mudar de corpo, imagina como isso foi torturante pra sua mente?
Afinal de que é feita uma pessoa? De suas histórias, suas memórias, seus sucessos, seus fracassos. Da sua família, seus amigos, seus talentos, seus desejos, suas esperanças, sua fé, seu ceticismo. E também dos seus amores, suas tristezas, suas alegrias, suas paixões. Ela viveu tudo isso. Como alguém pode limitar a vida de uma pessoa a sua aparência física? Como podem encerrar tudo que alguém foi, fez e sonhou num padrão de beleza de gosto duvidoso imposto por esse ser onisciente chamado mercado? Marília não era o seu corpo. O seu corpo fazia parte dela e não o contrário.
Por trás do corpo daquela mulher que agora jaz sem vida havia um ser humano. Uma mãe e artista brilhante que encantou milhões de pessoas com seu repertório. A ponto de ganhar o título de Rainha da Sofrência. Suas letras falavam de amor e desilusão para um público que se identificava e se sentia abraçado por ela.
Marília Mendonça, seu corpo e sua mente, passaram pelo crivo ultra machista de uma sociedade gordofóbica e de um gênero musical tradicionalmente masculino. E conseguiram alcançar o estrelato. Ela é considerada, inclusive, a principal responsável pelo surgimento do segmento musical conhecido como feminejo.
Sua contribuição para o empoderamento feminino na música brasileira é inegável. Assim como é inegável a falta que fará no coração de milhões de admiradores. Que foram tocados não por seu corpo, mas por sua alma. Alma essa que ela depositava em cada música que compunha e interpretava.
Este artigo foi escrito por Guilherme Cunha e publicado originalmente em Prensa.li.