A maternidade imposta e a exclusão da mulher do seu próprio existir
Eu gostaria de encontrar algumas pessoas de lugares diferentes e vidas muito diferentes, e perguntar a elas: qual é a principal coisa que você precisa para exercer bem uma atividade diária? Seu trabalho, seus estudos: o que faz com que você seja bem sucedido em realizar isso?
Acredito que muitas responderiam: uma rotina ou paz para trabalhar. Eu não sei responder o que eu preciso. Eu não faço a menor ideia, na verdade! Não sei se eu seria mais produtiva se pudesse seguir uma rotina ou se pudesse contar com silêncio e até solidão quando preciso escrever. Eu sei que eu preciso manter minhas crias bem cuidadas e alimentadas. E também preciso dar a segurança emocional ideal, porque ser criança em tempos de pandemia não deve ser nada normal. Ah, tem toda a parte do afeto, lidar com o isolamento e o rompimento do convívio social, a ansiedade...inúmeras necessidades. Enquanto escrevo esse texto meu filho já me interrompeu 3 vezes: para colocar um adereço, para pedir lanche, para dizer que quer ir na rua fazer qualquer coisa diferente de ficar dentro de casa...as 3 vezes eu interrompi minha escrita...afinal, é um menino de 4 anos que necessita de muitas coisas, principalmente de falar e ser ouvido quanto às suas percepções acerca do que ele precisa. Bom, mas eu não faço ideia do que eu preciso!
Quando discutimos a invisibilidade da mulher na sociedade após a maternidade falamos sobre perda de direitos, sobre cansaço físico e mental, jornada dupla… enfim, todas as dimensões sociais das quais sempre fizemos parte e a partir da maternidade deixamos de integrar ou, somos recolocadas. Há um discurso generalizado, que se autoproclama “protetor”, sobre a nossa nova condição: a partir da maternidade nos tornamos leoas capazes de tudo para garantir a sobrevivência e a plenitude da existência de nossas proles. É esse discurso que nos retira de ambientes de trabalho, ambientes de convívio social, até mesmo dos círculos familiares: “Não vai às festas de família porque está amamentando, muito cansativo”; “não vai ao passeio no parque porque é desconfortável para o bebê”; “não serve mais para a empresa porque se o filho adoecer vai pegar atestado”. Veladamente nossa existência é apagada; somos mutiladas, à medida que “compramos” esse discurso e abrimos mão das nossas necessidades. E, quando digo necessidade, não falo do básico ou material da vida humana, falo de prazer; paixão; liberdade; poder de criar mais que filhos e gerar mais que filhos! Falo da negação e do apagamento do que temos de mais especial: nossa singularidade, nossa essência.
E entramos em um ponto crucial: a maternidade sempre é SOLO. E é muito bacana quando se tem uma rede de apoio que viabiliza algumas coisas à mãe; pais que fazem o que tem que fazer, dindos e dindas que levam pra passear no fim de semana, avós e avôs que vem nas férias, amigos e amigas que encorajam a gente a sair com as crias e dão o mínimo de atenção nesses encontros. Isso tudo faz com que não nos sintamos fora de um mundo que, até ontem, era nosso também. Mas a maternidade em si, é solo e por um motivo tão simples: ninguém é obrigado a ser rede de apoio de uma mãe, e esse medo - de que os nossos não queiram ser rede de apoio quando nossos bebês nascerem - nos acompanha desde que descobrimos a gestação. Esse medo que não é socialmente discutido e muito menos cuidado durante a gestação, cresce e nós começamos a silenciar sobre o assunto e criar formas de driblar qualquer necessidade de uma terceira pessoa no que diz respeito ao cuidado com nós mesmas e nossas crias. É sério, eu odeio que façam qualquer coisa por um filho meu sem eu estar pagando por isso. Foi um meio que criei de não ser julgada se fui para o barzinho, ou se fui trabalhar, “ou se qualquer coisa”. E olha, eu considero que tenho uma rede de apoio bastante disposta, além de um companheiro que conhece e faz sua parte.
A solidão materna também é fruto do discurso de que somos leoas que protegem a prole a qualquer custo. Também nos leva a criar mecanismos que anulam nossa essência, nossas vontades próprias. Aos poucos, com a rotina de cuidados e de manutenção desses dispositivos de independência e de capacidade do que diz respeito à outro ser humano, nos esquecemos da nossa necessidade de ouvir uma música enquanto arruma a casa; olhar a lua todos os dias à noite; ler enquanto toma um solzinho em silêncio na primeira hora do dia… Nos desconectamos da nossa essência preocupadas em criar filhos conectados com suas próprias necessidades. Falhamos? Dizem que “se educa pelo exemplo”...mas eu jamais ousaria dizer que uma mãe, com toda a demanda de equilibrar o mundo nas mãos, tenha falhado.
Na verdade, falha a sociedade que se acha no direito de dizer como devemos exercer nossa maternidade; no direito de me julgar uma péssima mãe, quando escrevo esse tipo de texto, ou outra mãe que ouse dizer “amo meus filhos, odeio a maternidade”. A sociedade falha quando entende a ideia de “rede de apoio” como um movimento interno, do convívio social, enquanto, na verdade, rede de apoio fala da responsabilização que toda a sociedade deve ter com cada criança por serem cidadãos em formação. Falha quando nos permite viver em silêncio nossa própria mutilação em prol de um ser que amamos incondicionalmente. A maternidade é solo nos espaços e momentos mais íntimos que nós, mulheres, possuímos: nossa mente, nosso corpo. E é preciso falar sobre a falha da sociedade com mães quando nos recolocam socialmente, como se fôssemos peças de um tabuleiro, sem respeitar nossa essência, nossa trajetória.
Este artigo foi escrito por Rhay Belloti e publicado originalmente em Prensa.li.