Maus: a história de um sobrevivente do Holocausto
Imagem: Divulgação / Art Spiegelman
No dia 27 de janeiro de 1945, as tropas soviéticas na Polônia libertaram os prisioneiros que restavam em Auschwitz, o maior e pior campo de concentração e extermínio nazista. No ano de 2005, em uma assembleia realizada na ONU, foi-se instituído que esse dia se tornaria o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto.
As representações do Holocausto são feitas de várias formas como relatos, vídeos, fotografias, filmes, pinturas, histórias em quadrinhos. De formas variadas, sejam sutis ou intensas, essas representações existem para nos mostrar um dos momentos mais marcantes do século XX e de toda a história.
Mauschwitz
Todas as vezes que vejo algo relacionado a II Guerra Mundial, em especial a questão dos sobreviventes do Holocausto, eu me lembro de uma das melhores HQs já produzidas até os dias de hoje: Maus - A História de um Sobrevivente.
Nessa HQ temos uma mescla de imagens, textos, diálogos curtos e profundos, além de ilustrações fortes e impactantes. Ao longo da história vemos um retrato ímpar da ascenção, do ápice e da queda do nazismo nas décadas de 1930 e 1940.
Publicada entre 1986 e 1991, ganhando o Prêmio Pulitzer em 1992, o livro se tornou fundamental para expandir as possibilidades das narrativas em quadrinhos.
Maus, até hoje, é a única graphic novel a receber este prêmio, com um acréscimo especial: o comitê do prêmio não enquadrou a obra na categoria de newspaper cartoon, que era o esperado, pois a considerou como Literatura.
Maus foi a maneira pela qual Art Spielgeman encontrou para relatar a vida de seu pai desde os anos 1930, quando conheceu e se casou, passando por toda a perseguição sofrida pelos judeus na Polônia e em outros locais, atingindo o clímax da história nos campos de concentração, quando foram presos em 1944.
A obra é o resultado das entrevistas feitas pelo autor e seu pai, Vladek.
Nas narrativas de Art, além da dificuldade em relacionar-se com o pai, existe a preocupação do artista com os depoimentos e em transformá-los em algo verossímil.
Quando as narrativas são direcionadas a Vladek, elas são feitas em flashback, contém várias fotos, diagramas, mapas, esquemas que variam desde a construção de esconderijos nas casas até consertos de coturnos.
Para deixar claro ao leitor que a história não é uma ficção, Art se utiliza de fotografias ao longo da obra, como a de seu irmão Richieu, de si mesmo, pequeno, ao lado da mãe e de seu pai vestido como prisioneiro.
Maus, que em alemão significa rato, aponta para as representações antropomórficas contidas na obra: os alemães são os gatos, os poloneses são os porcos, os estadunidenses são os cães, os franceses são os sapos, os ciganos são as borboletas, os suíços são os alces, os russos são os ursos e os britânicos são os peixes.
A escolha dos estereótipos é feita de forma a delimitar a ideia de predador e caça.
A escolha das ilustrações em preto e branco dão maior ênfase na narrativa levando os leitores a uma imersão na obra, sem distrações ou evasões.
As ilustrações não suavizam o contexto, trazendo cenas fortes como valas repletas de corpos, execuções sumárias, torturas físicas e psicológicas, personagens cadavéricos que simplesmente sobrevivem ou que caem exauridos e sem vida.
Resistir sempre
Maus ainda fala sobre resistência.
Beatriz Sarlo, escritora e crítica literária argentina, afirma que “o Lager [campo de concentração nazista, em alemão] não é um espaço de resistência”. O que seria, então, a resistência apontada no livro?
Quando analisamos a frase acima, precisamos entender o contexto geral do período em questão. Hannah Arendt entende o Nazismo como um Regime Totalitário, ou seja, uma ampla dominação ideológica em que o terror é instituído como forma de governo e o comportamento passa a ser guiado para “executar sem mais delongas as sentenças de morte que a Natureza supostamente pronunciou contra aquelas raças ou aqueles indivíduos que são ‘indignos de viver”.
Em um Regime Totalitário, os homens perdem a sua identidade e tornam-se uma única massa guiados pelas mãos de um governante, deixando de ter suas próprias convicções para reproduzir o que o governante impõe.
Nesta ótica, a partir do momento em que Hitler se torna Chanceler da Alemanha, em 1933, o partido nazista segue sua escalada ao poder levando consigo o discurso do arianismo, da verdadeira raça pura que deveria exterminar as demais, os seres inferiores, os grupos indesejáveis que contaminavam a sociedade com sua existência, dentre elas os judeus, negros, ciganos, homossexuais e todo aquele que não se enquadrasse nos padrões determinados, como os fracos, os doentes, os deficientes físicos e mentais.
Em um Regime Totalitário como o Nazismo, a resistência precisa estar nos detalhes, nas mínimas coisas, e é assim que Art a apresenta em sua obra.
A “poética do detalhe”, conceito criado por Beatriz Sarlo, parte da valorização dos pormenores, dos detalhes em relação à unidade, do original e não do padrão, aquilo que é exceção e não regra. É resistir onde não se espera, é lutar contra o sistema de maneira eficiente, afinal, essa resistência não é detectada facilmente e, por este motivo, tem-se dificuldade em combatê-la.
Vladek se valia de suas "astúcias", "as tretas do fraco". Se por um lado o Nazismo subordinava e padronizava os “indignos” através de seus campos de concentração, vestimentas iguais, símbolos de identificação, trabalhos forçados, médicos que determinavam a vida e a morte, racionamento e escassez de comida, por outro lado temos aqueles que não aceitavam passivamente essas condições e criavam resistências através dos “detalhes”.
Um exemplo usado na HQ é a forma como se retrata os judeus na Alemanha antes da guerra, expondo um cartaz segurado por um deles com os dizeres "eu sou um judeu sujo", evidenciando a forma como eram vistos pela sociedade: sujos, repulsivos, repugnantes.
Vladek, ao invés de aceitar o estereótipo, procurou se manter limpo, ajustado, bem-vestido, ainda que os soldados lhe dessem roupas ou sapatos diferentes do seu número, ele negociava ou trocava favores para se manter alinhado.
Uma outra tática apontada em Maus é a dissimulação. Vemos Vladek usando uma máscara de "porco polonês" para não ser reconhecido ou, em situações de extremo perigo, buscava os "buracos para ratos" e encontravam esconderijos.
Depois de preso, para se manter ativo e evitar a fraqueza e as doenças, ele optou por comer o que era oferecido, independente do que fosse.
Art Spiegelman ao retratar a vida de seu pai e a sua, coloca passado e presente em um diálogo buscando compreender os porquês de tamanha atrocidade em um testemunho magistral do que aqueles tempos significaram não apenas para os sobreviventes, mas, para todos os seus descendentes.
Este artigo foi escrito por Edu Molina e publicado originalmente em Prensa.li.