Medida Provisória decreta o fim da democracia racial
Medida Provisória / Divulgação
“Raça” talvez seja a temática mais debatida de toda a história do Brasil, e vozes negras sempre estiveram ativamente, intelectual e politicamente disputando os rumos de discursos raciais. Os descendentes de africanos e africanas escravizadas jamais estiveram passíveis diante dos projetos de nação do estado brasileiro. Pertencimento e identidade, articuladas à questão racial, são temáticas centrais de Medida Provisória (2022), filme de estreia do ator e escritor Lázaro Ramos atrás das câmeras.
Inspirado na peça Namíbia, Não!, do baiano Aldri Anunciação (interpreta Ivan, parte do Afrobunker), também dirigida por Lázaro, Medida desenha um futuro distópico em que a metafísica racial - o entendimento de que o mundo é separado entre grupos raciais, de explicação biológica, cultural ou moral - escala em formas públicas diante do avanço da luta por reparação ao passado escravocrata. O discurso da “democracia racial” se quebra e, em seu lugar, o estado adota oficialmente uma política de apartheid - iguais, porém, separados - e dá início a um programa de deportação de cidadãos de “melanina acentuada” para países africanos.
A história da “democracia racial” envolve a própria construção da ideia do Brasil como um “país negro”, como explicam o sociólogo Antônio Sérgio Guimarães e a historiadora Paulina Alberto. No período chamado de pós-abolição, início do século XX, círculos de intelectuais e ativistas negros no Brasil defendiam o valor da miscigenação e do sincretismo no combate à crença ariana da superioridade branca e da política estatal de branqueamento.
Essa política incentivou a imigração europeia desde a metade do século XIX. A partir dos anos 1930 e 1940, a “democracia racial” entraria em vigor como parte da influência modernista no nacionalismo populista de Getúlio Vargas. Nos anos 1960, esse discurso tornou-se slogan da ditadura civil-militar e sua investida em ícones esportivos negros e perseguição às culturas populares negras, como os bailes cariocas, o movimento black soul.
Os militares vigiaram e censuraram o movimento negro unificado que se reorganizava em torno de vozes importantíssimas, como Abdias Nascimento e Lélia Gonzalez. A redemocratização do país, desde a constituinte de 1985, passou pelo combate ao racismo e questionou a “democracia racial”.
O reconhecimento formalizado da responsabilidade do estado brasileiro na escravidão, o início da demarcação das terras quilombolas e o programa de ações afirmativas avançou esse desmoronamento da crença de harmonia entre as “raças”, embora ainda rumine melancolicamente na direita. A esquerda, por sua vez, tratou de travar maiores avanços nesses debates acusando o movimento negro de identitarismo e de não se comprometer com um nacional-popular classista.
Em meio a essas tensões, ao que parece, a “democracia racial” se desfez, e Medida Provisória decretou seu fim. Digo que se desfez porque não representa mais um campo discursivo de uma possível negociação em torno de um projeto nacional. Frente ao genocídio da juventudade negra, às políticas de vigilância e ao encarceramento em massa - temas que atravessam o longa de Lázaro - a questão do que deve ser a identidade nacional, como ela deve comportar sua diversidade inerente, reaquece, sem forma predeterminada.
Como o próprio Lázaro Ramos fez questão de afirmar no programa Roda Viva da TV Cultura e no livro-diário homônimo que publicou junto ao lançamento do filme, pela editora Cobogó, Medida é o filme com o maior número de pessoas negras em frente e atrás das câmeras. O longa de estreia de Lázaro contou com participações ilustres, como Emicida, Seu Jorge e Taís Araújo, além da surpresa de Conceição Evaristo, que participa de uma cena nos créditos.
Com isso, o filme se candidata à termômetro da política negra, construindo em torno de si uma sátira que repete a maior parte das discussões populares da juventude negra e branca, que vai desde o colorismo até relacionamentos interracial (a chamada palmitagem).
Em seus relatos, Lázaro descreve o clima intenso das gravações envolto em discussões políticas acaloradas, e confessa que em alguns momentos precisava partir dele a voz rígida que encerrava o debate e retomava o trabalho. Lázaro também conta que a produção contou com um dossiê escrito pela socióloga Aline Maia Nascimento que informava os principais temas contemporâneos nas pautas raciais e identitárias.
Vários são os elementos da narrativa que interessam em uma reflexão atenta. Lázaro nos diz que a distopia é um alerta ao momento político atual do Brasil. Seu longa apresenta um pessimismo nas primeiras cenas, quando o pedido de reparação monetária de uma senhora negra é negado por falta de verbas.
A discussão entre André (Seu Jorge) e Antônio (Alfred Enoch), dois primos, homens negros e antirracista, apresenta a incerteza dessas cenas de abertura - uma estrutura que lembra o teatro. André é um jornalista e ativista que reivindica uma postura combativa; Antônio, por sua vez, é advogado, otimista e resistente às categorizações raciais.
Antônio é eleito o representante da voz-autoral no longa. Apesar de Lázaro destacar também Capitu (Taís Araújo), médica, mulher negra e companheira de Antônio, é em torno do advogado que giram seus principais takes. Será dele também os gritos emocionados na sacada do seu apartamento afirmando: “eu sou brasileiro!”.
Alfred Enoch, Taís Araújo e Seu Jorge nas filmagens de Medida Provisória / Divulgação
Um político de direita lidera o programa de deportação “voluntária” de cidadãos de “melanina acentuada” para países africanos. Após resistências e críticas, uma medida governamental torna obrigatória a extradição dos negros do Brasil. Nesse sentido, a direção de Lázaro Ramos é brilhante ao demonstrar a máxima política do racismo: sua ambiguidade com os valores ocidentais de liberdade e democracia.
Em nome da lei, a medida provisória suspende a lei. A norma torna-se exceção, e o país é mergulhado em uma campanha de perseguição desenfreada que resulta em um ataque amplo aos direitos civis, inclusive de alguns cidadãos brancos que se esforçam para se aliar aos resistentes. Em síntese, não há democracia enquanto houver racismo.
Em seu diário, Lázaro Ramos diz experimentar com Medida Provisória uma mistura de gêneros, que vai do thriller até a comédia - uma colaboração especial do talento sarcástico de Seu Jorge. No entanto, um tom satírico sobressai, muitas vezes mal compreendido como “caricato”, “bobo”. Não é nada disso! Na verdade, o filme quebra com a ambiguidade e a hesitação presente no racismo, a exemplo do “mito das três raças” que valoriza todos os “povos formadores da nação”, contanto que cada qual assuma seu lugar na hierarquia social.
O que resta de todo entendimento de mundo presente na “raça” e na mente racista é grotesco, irracional e capaz de arrancar do público estrondosas risadas. É essa face burlesca, geralmente disfarçada em polidez e falas rebuscadas, quase sempre carregadas com uma completa imbecilidade de fundo, que é desnudada no filme. Adriana Esteves, atriz que interpreta Isabel, uma burocrata responsável por aplicar o programa de deportação em um distrito do Rio de Janeiro, talvez seja quem melhor representa esse lado tragicômico da mentalidade racista.
Personagens brancos negam suas relações históricas com africanos em defesa de uma “pureza de sangue”, repetem chavões racistas e tornam-se motivo de chacota nas rodas de conversa dos protagonistas negros. Esses, no entanto, transformam-se em delatores perigosos no momento em que a exceção entra em vigor.
A violência racial, nesse sentido, se camufla nesses quadros grotescos. O racismo toma conta do clima urbano, polui a cidade, separa amantes, amigos e parentes. Uma mãe negra luta contra um policial que tenta separar sua filha albina dela por acreditar que seu parentesco não pode ser verdadeiro, uma vez que não possuem a mesma cor.
A melanina torna-se significante de uma cadeia de entendimentos, comportamentos e pré-concepções que, uma vez concretizadas, requerem a tarefa árdua de combater. As consequências disso são encenadas nas cenas sincronizadas em que André é morto por policiais e Santiago, homem branco que entra no Afrobunker para encontrar seu namorado, é assassinado pelos quilombolas resistentes.
O racismo - Lázaro parece dizer - pode contaminar a todos, e é preciso ter responsabilidade em seu combate. É o que diz com a voz de Antônio, quando ele se recusa a atirar em um supremacista branco já abatido: “alguém precisa ser melhor do que isso!”. O melhor momento de Medida Provisória é, sem dúvidas, esse otimismo da vontade, um humanismo-utópico de Lázaro Ramos, essa chamada à responsabilidade de brancos e negros na reconstrução da nação.
Seus piores momentos, no entanto, carregam consigo uma falta de historicidade nessa política. Isso talvez reflita os embaraços do próprio antirracismo atual, mergulhado em temas rasos em redes sociais, muitas vezes seduzidos por certezas essencializantes, que impedem um nicho “militante” (do sofá de casa) de compreender a seriedade da “raça”. Ao contrário, se satisfazem com respostas narcísicas e auto-compensatórias.
Difícil dizer se o aceleracionismo distópico do longa acaba não trabalhando o nexo entre a passagem da democracia racial para o racialismo separatista do mundo do Medida; ou, uma outra opção, muito mais radical, se o filme adverte que essa interpretação dualista e maniqueísta de mundo, que no passado foi motivo de cinismo em comparação com o segregacionismo dos Estados Unidos, está operando no Brasil hoje e deve ser um obstáculo no futuro.
O fascismo bolsonarista, o crescimento vertiginoso de células neonazistas e mesmo de outros grupos de extrema-direita parecem depor a favor da segunda hipótese.O que mais decepciona, no entanto, é o Afrobunker, um quilombo afrofuturista apresentado como uma espécie de resistência genérica.
Talvez sem tempo de trabalhar esse núcleo - Lázaro reivindica uma série própria para os personagens do Afrobunker, e conta com minha irrelevante voz de apoio -, o filme não atenta ao fato de que quilombos são resistências históricas, mas são também modos de vida completamente alternativos ao apresentado pelo civilizacionismo moderno - como argumentou nos anos 80 a historiadora Maria Beatriz Nascimento.
Por fim, o lado estrutural do racismo é o mais apagado no filme e, temo, no entendimento sobre a violência racial. Racismo é uma estrutura de dominação, um sistema que cria, sustenta e alimenta as diferenças raciais. Seu objetivo primeiro, apesar das aparências, não é a humilhação da vida negra, mas o lucro.
Do contrário, seria como dizer que a colonização tornou-se racial apenas quando o tráfico transatlântico foi implementado - o que seria apagar a posição limiar dos povos nativos nessa trama. O problema de não trabalhar o racismo por sua estrutura é que a delimitação da questão antecipa sua resposta.
Qual resposta a política negra tem apresentado hoje? Várias, muitas discordantes entre si. Via mercado, no entanto, tem sido uma relevante, muito amplificada, que apresenta um tipo de antirracismo desvinculado do seu braço anticapitalista, uma das suas principais marcas históricas.
Tratar como uma “distopia realista” que uma política racial no Brasil queira livrar-se dos negros beiraria a ingenuidade. Seu objetivo, como diz o filósofo afro-estadunidense Frank Wilderson em Afropessimismo (Todavia, 2021), é muito mais cruel: o racismo cria e recria o “negro” (a figura racializada do negro), o assassina e o regenera, para extrair seu calor (um ato de punção).
É assim, seja na exploração do trabalho reprodutivo das trabalhadoras domésticas, seja na extração do energia-vital dos entregadores de aplicativos. Falar sobre racismo requer falar de modelos histórico-econômicos de produção, a razão primordial da escravização de povos indígenas e africanos, além da servidão de vários outros.
Caso contrário, o problema racial é apenas arranhado em sua superfície, capaz de entreter um público desejante por algum diversionismo diante da questão de habitar um mundo racializado; porém, incapaz de responder às políticas de “raça” atuais.
Este artigo foi escrito por Gabriel Gonzaga e publicado originalmente em Prensa.li.