Metaverso e Privacidade
Imagem: jsanz_photo / Envato Elements
O termo do ano passado foi metaverso. Apareceu inclusive no sisudo Financial Times. No mundo da tecnologia digital, quase todo ano aparece um novo termo que acaba sendo super amplificado. Vira o hype do momento e chovem seminários, posts, vídeos e palestras sobre o assunto.
Neste ano de 2022, veremos mais eventos sobre o assunto. O difícil, entretanto, é separar uma “trend” de uma “trending’. Trend ou tendência é algo consistente que vai amadurecendo e se disseminando ao longo do tempo.
Por exemplo, muita gente falou sobre computação em nuvem, machine learning e mobilidade. No entanto, mesmo com poucas ações e muitas dúvidas, esses termos se estabeleceram de forma consistente. Por outro lado, “trending” é fashion, como a cor do ano. Apesar de ser muito falado, em pouco tempo desaparece.
A pandemia nos mostrou que a vida na Internet não é mais opcional e faz parte das nossas vidas, como o home-office que vem ganhando força. Logo, a proposta futurista do metaverso é amplificar essa imersão, para as BigTechs é uma grande oportunidade de aumentar a sua presença e importância na vida das pessoas e, claro, embolsar dezenas de bilhões de dólares a mais.
Hoje é difícil saber se metaverso é apenas fashion ou se vai ser consolidado. Apesar da dúvida, o conceito é relativamente comum em games, como Fortnite e Roblox. A geração que nasceu na era dos smartphones, já aprendeu a interagir com computadores jogando em 3D, mas esse contexto não está no dia a dia das pessoas e das empresas fora do universo dos games.
A proposta do metaverso, pelo menos a expressada pela Meta (ex-FB) e outras BigTechs como Apple e Microsoft é fazer com que as pessoas fiquem imersas no mundo virtual praticamente para tudo. Sendo que atualmente já passamos muito tempo no mundo digital, com a internet no bolso: compras online, transações financeiras, reuniões online, redes sociais, grupos de WhatsApp ou Telegram, e por aí vai.
Realidade via internet
A Internet permitiu que as empresas rastreassem seus clientes movendo o mouse ou olhando para uma tela. No metaverso, eles serão capazes de rastrear o movimento corporal, as ondas cerebrais e as respostas fisiológicas à diferentes estímulos. Informações muito mais pessoais e sensíveis.
O Metaverso aparece de forma idílica como a próxima evolução da internet, criando um cenário futurista onde estaremos todos vivendo hiperconectados e imersos em um mundo digital.
A tecnologia já está fazendo com que nossa percepção da realidade seja alterada. As mesmas histórias e fatos podem ser distorcidos para caber na narrativa desejada, dependendo de qual fatia da web estejamos sintonizados.
O conteúdo das redes sociais que visualizamos, controlado por algoritmos fora de nosso alcance, é projetado para ativar nossa reação e engajamento, usando os nossos sentimentos e desejos para direcionar os anúncios que vemos.
Hoje, percebe-se que já vivemos em grande parte de nossas vidas, em mundos fundamentalmente diferentes, cada um com seu próprio conjunto de fatos, dependendo dos posts e vídeos que consumimos.
Alguns estudos mostram que uma pessoa acessa em média o seu smartphone 2.617 vezes todos os dias, e o vício nesses aparelhos (nomofobia: fobia de ficar sem celular) está aumentando. Isso levanta uma questão essencial: estamos controlando a tecnologia ou a tecnologia está nos controlando?
Com o metaverso, uma nova camada de tecnologia de ambiente, sempre presente, sempre ligada, hiperconectada, vai envolver o mundo ao nosso redor. A contínua coleta de dados sobre nós e a tomada de decisão algorítmica permitem que nossos ambientes sejam mais infiltrados com informações e metadados constantemente coletados de nossos históricos de pesquisas, nossos posts, nossas compras, nossas localizações, nossos padrões de sono, nossos batimentos cardíacos, nossos desejos e até ciclos menstruais.
Alerta - Privacidade
Acende aqui um sinal amarelo. Privacidade! Muitos consumidores tendem a aceitar as políticas de privacidade ao baixar um novo app sem lê-las. Eles podem até estar cientes de que empresas e agências de publicidade usarão seus dados, como localização e cliques, para lhes entregar anúncios direcionados.
E alguns também sabem que as empresas solicitam e são atendidas em seus pedidos para compartilhar seus dados com terceiros, sem que não tenham nenhum controle sobre eles. Mas, deixam para lá. Entretanto, quando estoura um escândalo sobre vazamento de dados do usuário do app ou seu uso indevido, sso gera indignação.
Agora, pensemos no metaverso. É preocupante imaginar que esse tipo de comportamento do consumidor provavelmente irá migrar para o metaverso, à medida que mais pessoas compram fones de ouvido e óculos de RV/RA.
Hoje, esses óculos não são naturais. Mas, se fizermos uma analogia com a computação, em 1981 tínhamos um PC na nossa mesa, cheia de fios. Hoje temos um computador no nosso bolso, milhares de vezes poderosos. Em 40 anos. Talvez daqui a 10 anos os óculos de RA/RV sejam bastante próximos dos que usamos rotineiramente.
Assim, embora o metaverso possa criar um mundo de infinitas possibilidades para as marcas criarem experiências e se envolverem com os clientes de maneiras totalmente inovadoras, a tecnologia não é isenta de perigos. Deepfakes e ataques cibernéticos podem prejudicar uma marca e seus clientes.
"Pode ser pior do que as redes sociais"
As empresas não devem mergulhar no metaverso sem atenção a esses aspectos. Um dos criadores da tecnologia de RA escreveu recentemente um artigo, em que expressa sua preocupação: “Metaverse: Augmented reality pioneer warns it could be far worse than social media”.
No texto, ele aponta o lado positivo das tecnologias de RA, base do metaverso, mas também chama atenção para o fato que o metaverso poderá nos tornar ainda mais dependentes das camadas de tecnologia que medeiam nossas vidas e das BigTechs que controlam essas camadas. Isso poderá nos deixar cada vez mais suscetíveis a manipulações e distorções.
Na verdade, todo progresso tecnológico tem um preço. O metaverso irá transformar a forma como interagimos e socializamos uns com os outros, como viajamos, fazemos compras e consumimos informações, oferecendo atividades online que no momento só estão na nossa imaginação.
Com esse universo interconectado, podemos esperar novos desafios e riscos, principalmente no que diz respeito à nossa privacidade. O metaverso irá coletar mais informações sobre nós do que qualquer outra plataforma. Consequentemente, as consequências serão mais preocupantes.
Meta-Marketing
Ao incorporar anúncios no metaverso, é importante considerar o impacto sensorial da experiência. Os exemplos de hiperrealidade já nos mostram como os anúncios sobrepostos na experiência podem gerar sobrecarga sensorial. E essa sobrecarga pode desencadear convulsões em pessoas que sofrem de epilepsia. Locomoção com óculos de RV/RA em um ambiente desconhecido pode provocar acidentes.
Já sabemos que as vivências virtuais impactam a memória das pessoas, pode dessensibilizá-las ou fazer com que elas sintam que já realizaram alguma ação antes, mesmo que nunca a tenham feito na realidade.
O marketing para adultos no metaverso é uma coisa, mas para as crianças é outra. Teoricamente, qualquer um pode ser qualquer coisa no metaverso, mas com isso torna-se importante conhecer algumas informações, como a idade. Mesmo que alguém se passe por um adulto, as empresas ainda precisam confirmar se são realmente e agir adequadamente.
As experiências para crianças e adultos não serão as mesmas. Vimos os impactos disso nos documentos do Facebook publicados pelo Wall Street Journal, em que se mostrou claramente o impacto do Instagram na saúde mental de adolescentes.
Entrar no metaverso vai exigir investimentos em segurança cibernética para evitar escândalos de dados e manipulação de marcas. Deepfakes, avatares hackeados e objetos manipulados são alguns dos tipos de comportamentos maliciosos que poderão surgir e que precisarão ser controlados.
Obviamente que não existe regulação para o metaverso e provavelmente nem existirá, mas indiscutivelmente que a prioridade e responsabilidade das empresas deverá ser agir com ética e garantia de privacidade de seus usuários nessa imersão.
Um metaverso como proposto pela Meta e outras BigTechs ainda está distante. Hoje é mais um conceito que realidade. Mas, à medida que construímos esses admiráveis mundos novos hiperconectados, alimentados pelas RA/RV, precisaremos abordar proativamente a segurança, a privacidade e a ética.
Precisamos ter regras de convivência adequadas no metaverso, porque sem consentimento informado e falta de consciência sobre os riscos que essas tecnologias sofisticadas podem trazer, podemos ficar muito próximos de um cenário distópico.
Esses são os pontos que pretendo discutir sobre o metaverso . Não vivemos em um mundo de ficção científica, mas em um mundo real. Durantes algumas décadas fui surfista e não creio que a sensação física de dropar uma onda consiga se refletir, por mais “perfeita” que seja, na experiência digital, o mesmo quando “pilotei” um trenó de cachorros em Rovaniemi, na Finlândia, a uma sensação térmica de -40 graus!
Os mundos físico e digital estão se desenvolvendo para se tornar quase indistinguíveis. Essa teia de tecnologia ambiental está moldando nossa nova realidade. E fica a seguinte questão: é isso que queremos? Quais serão os limites?
Este artigo foi escrito por Cezar Taurion e publicado originalmente em Prensa.li.