Minha viagem, minha trajetória
Foi em 1977, já havia terminado as aulas, estava em dezembro quando viajamos para São Paulo. Eu, outro irmão e uma irmã, três dos sete filhos que continuam vivos da nossa família. Meu outro irmão e duas irmãs, mais novas, minha mãe e meu pai já viviam na capital.
A viagem foi uma aventura de mais de doze horas de ônibus do interior de Minas até São Paulo, saímos bem cedo, a rodoviária ainda era meio improvisada, o ônibus vinha de outra cidade, mais ao norte. Trouxemos bastante comida, era uma época de poucas paradas no trajeto e os recursos eram poucos.
Quem estava nos trazendo para São Paulo era um amigo de meu pai, o Dedão, que estava na cidade revendo sua família. A estrada era estreita, carros, ônibus e caminhão passavam a todo momento, subindo e descendo as serras. Paramos três vezes no caminho até chegar a São Paulo.
A rodoviária ainda não era na marginal, ficava no centro da cidade, na Praça Júlio Prestes, em frente à estação de trem para o subúrbio. Chegamos pela manhã, dali caminhamos até a avenida Rio Branco e pegamos um ônibus urbano para a Freguesia do Ó.
Minha primeira visão da cidade era de um lugar imenso, muita gente e carros para todo o lado. Prestava atenção em tudo e no caminhar apressado do Dedão. Ele carregava as malas maiores, eu carregava mais uma e minha irmã e meu irmão duas sacolas. O ônibus demorou um pouco, não sei precisar quanto tempo, mas foi tempo suficiente para observar tudo a minha volta, prédios grandes e pequenos, lojas e bancas de jornal. No trajeto atravessamos o Rio Tiete, ali na Ponte da Freguesia do Ó.
Chegamos na Freguesia do Ó, meus pais moravam numa casa alugada em frente a uma quadra de futebol. Estava no meio da semana, meu pai estava no trabalho, meu irmão e irmãs já não tinham mais aula, minha mãe estava em casa. O Dedão cumprimentou minha mãe e disse voltar outro dia para conversar com meu pai.
Estava cansado da viagem, mas queria conhecer o lugar. Por sorte, em frente nossa casa havia uma quadra de futebol, assim foi o primeiro lugar que fui e fiquei a olhar alguns meninos a jogar bola. Esperava ser chamado para brincar também, mas não fui. A fome me abateu e fui para casa. Já estava quase na hora do almoço, ouvia um rádio ligado que não era na nossa casa, era na casa ao lado; um programa de notícias policiais contava estórias, não sei se verdadeiras, com uma voz enérgica que a todo tempo dizia que deveria combater o crime. Logo o almoço ficou pronto e fomos almoçar e depois fui descansar.
Os dias se passaram, lembro pouco, até o dia da mudança, o Dedão, amigo de meu pai, mais o Marcelo, outro amigo dele, vieram ajudar. Iríamos agora morar no subúrbio, longe da Freguesia do Ó, em um conjunto habitacional novo construído pelo Estado, que ficava a aproximadamente 1 hora de onde estávamos.
No caminhão colocamos o pouco que tinha em casa: cama, beliche, sofá, fogão, mesa e cadeiras. As roupas foram colocadas em uma mala velha e o restante em sacos azuis. Minha mãe e minhas irmãs iriam de ônibus e trem. Os amigos de meu pai foram dentro do caminhão, mas eu, meu irmão e meu pai, fomos em cima. Era um caminhão aberto e, naquela época, a fiscalização não era tão grande.
Fomos por dentro da cidade, sem pegar a marginal e a rodovia. Saímos pela Lapa, Parque Continental, chegamos a Osasco, na Avenida dos Autonomistas e depois chegamos à Carapicuíba.
Imagine chegar num lugar em que mudanças chegavam todo dia! Nossa sorte foi que nosso apartamento era no térreo, pois tinha mais três andares e sem elevador. Para subir móveis, geladeiras, entre outros, era um desafio para outros moradores.
O apartamento era de dois quartos, cozinha, banheiro, lavanderia e uma sala comprida, que foi dividida e virou mais um quarto. Quarenta e oito apartamentos em cada prédio, divididos em dois blocos. Mas a quantidade de prédios era bem grande, mais de cem. E todo mundo chegando naquele mês de janeiro de 1978. Jovens, crianças, velhos e adultos chegando todo dia.
Tudo era muito improvisado, as áreas comerciais também começavam a ser montadas, farmácia, mercado e padaria, num centro comercial pequeno na rua principal do bairro, onde passava o ônibus e ainda passa até hoje.
Em frente do prédio, naquele momento, existia uma área livre, onde limpamos e fizemos um campinho, de terra, e nos reunimos para jogar pelada quase todo dia - não havia outra coisa a fazer naquele começo. A turma foi se conhecendo em meio às brincadeiras e brigas, quase todos os dias também, mas, como sempre, era na mão que se resolviam as desavenças.
A escola foi outra novidade, todos éramos novos, reunidos naquele momento vindos de escolas diferentes. No caso, todos estavam para terminar o primeiro grau, no último ano que, naquela época, se chamava 8ª série. Com isso, o começo foi bem fácil em função de onde eu vinha, tanto que numa disputa numa Olimpíada de Matemática dividi a primeira colocação com uma colega. Não que eu fosse muito bom, mas já conhecia a matéria.
Foi uma época de escola no período da tarde e, pela manhã, ficava jogando bola ou outra brincadeira com colegas no prédio. Não havia uniforme, a tarde havia um suco ou leite, algo meio pastoso e biscoito. Depois da aula, voltavam as brincadeiras.
Logo, a brincadeira acabou. Pelo menos durante a semana, entrei num curso de mecanografia de uma fundação em Osasco, o dia todo, das 08:00h até às 17:00h. Depois conto com mais detalhes esse período. Mudaria para o horário noite para terminar o ginásio: faltavam somente 6 meses de aula.
Mas a noite era muito diferente, pois todos lá eram adultos, que trabalhavam durante o dia e estavam ali para terminar o ensino fundamental. O desânimo era geral, muita conversa e brincadeiras tomavam o lugar. Às aulas nem me lembro de ter assistido, mas lembro que na primeira prova percebi que ali também estava atrasado o ensino; a matéria era a mesma que tive no ano anterior. Peguei, fiz a prova e me levantei para entregar. O professor então me disse:
- Não vai fazer?
Olhei para ele com um ar de desentendido e respondi:
- Já fiz.
E entreguei. Ele olhou e sorriu.
- Quer sair? - perguntou.
- Posso ir embora? - perguntei eu.
Ele disse que sim. Fui embora.
Na outra semana, na entrega dos resultados, ele entregou a minha prova e disse “muito bem, foi a melhor prova desta turma”. Os colegas, então, me olharam e não disseram nada. Mas o cochicho foi percebido e o professor pediu silencio e continuou a entregar os resultados.
Depois de duas semanas de aula e uma prova é que perceberam minha presença na sala. Antes eu entrava e sentava no canto esquerdo da sala, bem no meio. Agora já me pediam para sentar no meio da classe, no fundo. Como estava chegando, aceitei e fui parar lá. Tinha alguma intenção naquilo que não percebi naquele momento.
Nas próximas provas, fiquei rodeado e os olhos chegavam de todos os lados, até que um dos professores tentou me retirar daquela posição e me colocar na frente, mas a maioria da classe reclamou e ele desistiu. Aquele semestre, eu terminava a prova mas ficava por ali, não deixava retirar minha prova da mesa, mas não virava a mesma e deixava que os olhos a enxergassem. Mas, naquele momento, também me fazia de surdo e não respondia a nenhum resmungo. Acabou rápido: foi de agosto a dezembro.
Na fundação em Osasco, onde fiz o curso de mecanografia, era divertido, mas cansativo, aulas teóricas e práticas. Tinha alunos de toda a parte do Brasil, do Sul, do Nordeste, do Norte, da fronteira com o Paraguai e cinco de São Paulo.
Duas vezes na semana tínhamos educação física, momento em que saíamos do Prédio Amarelo e nos levavam para o ginásio ou para o clube, onde tinha um campo de futebol gramadinho, muito diferente dos campos de terra em Carapicuíba - esse era bem cuidado. Lá até existia uma piscina grande. Nunca havia entrado numa piscina antes, somente cachoeiras e córregos no interior de Minas.
No ginásio, toda semana tinha ginástica e algumas brincadeiras. No campo, dávamos algumas voltas e jogávamos uma única vez e por um só tempo, aproximadamente uns 40 minutos. Dois instrutores é que cuidavam de todos, um senhor mais velho e um adulto, todos os dois eram gentis, mas outros funcionários sempre reclamavam das brincadeiras, gritarias e correria que fazíamos nos corredores do prédio. Lá tinham vigilantes e funcionários do banco que sempre reclamavam com os instrutores. Descobrimos que lá nunca houve anteriormente um curso para jovens, somente adultos estudavam na fundação. Mas parece que aquele curso seria o primeiro de muitos.
Durante o período do curso de mecanografia, num fim de semana foi marcado um acampamento perto dali, num centro de acampamento. Foram armadas 5 barracas: uma para os instrutores mais dois ajudantes e as outras 4 barracas para nós, os alunos naquela época. Recebemos um uniforme e um par de Ki Chute. Fomos na sexta-feira após uma janta no bandejão. Chegamos no início da noite, as barracas já estavam montadas. Os instrutores nos reuniram todos no centro das barracas, deram as instruções e dividiram os grupos conforme uma lista deles. Disseram que fôssemos dormir que o dia seguinte seria cheio.
Na barraca, havia quatro colchonetes. Tiramos o tênis e colocamos no canto do lado de fora, entramos e deitamos, mas não havia sono. Então, sentamos e passamos a conversar. Ficaram comigo na barraca: um colega de Pelotas, um da fronteira do Paraguai, Corumbá, outro de Mossoró, no Rio Grande do Norte. Nosso diálogo era sempre truncado por palavras e expressões que os outros não entendiam, assim, tudo virava piada ou risada, normalmente em voz alta.
Fomos advertidos com o barulho umas duas vezes, até que um instrutor veio e apagou o lampião da barraca. Época sem celular, então era momento de ir dormir. O céu estava estrelado, bonito mesmo. O Guilherme, garoto de Pelotas, não ficava quieto e disse “vamos fazer uma brincadeira”, “qual?”, perguntei eu. Estupidez minha.
- Vamos até uma das barracas dos outros e esconder um par de tênis.
- O que?, perguntei. Ele me pegou pelo braço e disse “vem”.
Lá fora, tudo em silêncio, até a barraca dos instrutores estava quieta e com o lampião apagado e ninguém de guarda. Guilherme foi até uma das barracas, pegou um par de tênis, o maior deles, número grande. “Agora vamos esconder”, disse ele, então eu pensei: “qual a graça disto?”, e sugeri:
- Vamos amarrar na outra barraca.
Ele topou, mas tirou algo do bolso do calção: era uma pasta de dente, e encheu os dois pés com a pasta e amarrou os dois na parte de cima da barraca.
Voltamos para a nossa barraca e deitamos rindo da travessura. Dormimos rápido e só acordamos com os instrutores nos chamando pela manhã, por volta das 7h. Ao levantar ouvimos uma conversa e o pessoal já se perguntava quem tinha feito aquela brincadeira. O Marco Antônio era o maior do grupo e o tênis era dele. Falava com os instrutores e estava muito nervoso, pois seu pé estava todo sujo de pasta. Olhando tudo aquilo, ficamos quietos e saímos para tomar o café, quando o Raimundo, que estava em nossa barraca, o de Mossoró, nos perguntou:
- Foram vocês dois né?
Olhei e pisquei o olho, mas não disse nada. Mas o Guilherme não se conteve e disse:
- Foi só uma brincadeira, mas quieto, senão sobra para você.
Na mesa do café, todos se perguntavam quem havia feito aquela brincadeira, quando o instrutor chegou e disse que se descobrissem quem foi, a pessoa iria tomar uma advertência, mas ficou somente nisto. Foi um alívio, mas não tinha certeza que terminaria assim.
Após o café, organizaram um futebol no campo. Foram montados dois times, um por cada instrutor. O Raimundo foi para um time, junto com o Marco Antônio. Eu e o Guilherme ficamos no outro time. Logo pensei, “ele vai contar”, mas esqueci logo que o jogo começou.
Sempre gostei de jogar bola. Apesar de não ser um exímio jogador, tinha velocidade e marcava bem. Foi quando jogaram a bola na lateral e corri para alcançar a mesma, que do outro lado vinha o Marco Antônio. Ele era muito maior que eu, mais forte também. Corri o máximo que pude e alcancei a bola, mas ele não queria a bola. Na lateral do campo havia um barranco e uma água corria do lado. Imagine que ele me acertou e me jogou longe! Fiquei ali caído, deitado sem me mexer. Senti que havia ralado as pernas e bati o braço numa pedra, mas a dor não era grande. Todos correram para ver a minha situação, quando ele chegou perto de mim e disse:
- Isso é para você aprender a não me sacanear, viu?
Bom, recebi o que plantei. Mas esperei o instrutor chegar. Ele me levantou e perguntou se estava bem. Disse que foi só um arranhão e levantei. O Guilherme me olhou de cima a baixo e foi cobrar do Marco Antônio o por quê daquela agressividade, mas o pessoal separou os dois. Paguei por nossa brincadeira.
Terminado o curso de mecanografia em dezembro e terminado o ginásio, fiquei aguardando se seria chamado para trabalhar no banco em Osasco, onde ficava a matriz. Era uma época em que a única diversão era o futebol em frente à nossa casa.
Foi quando inventamos de criar um time de futebol de salão para disputar um torneio no bairro, os jogos eram sempre no sábado pela manhã. Fizemos até carteirinha, o time se chamava Paulistano. O treino era no Campinho. Nos jogos não havia briga, mas sempre discutíamos. No campinho sempre brigávamos, mas naquela época era sempre na mão e, às vezes, corríamos para não apanhar.
Assinei meu primeiro contrato de trabalho em 16 de janeiro de 1979. Bom, melhor, quem assinou foi minha mãe. Fui contratado no cargo de aprendiz de mecânico. No galpão da oficina de máquinas foi onde aprendi a trabalhar consertando máquinas de escrever e calcular manuais, depois foram as elétricas. Trabalhava das 08:00h até às 17:00h, mas gastava mais de 1h para chegar e 1h para voltar para casa.
Esse foi o início da minha trajetória em São Paulo. Estou escrevendo estas linhas quarenta anos depois, assim, as lembranças são vagas, mas alguns documentos e poucas fotos me retornam ao início em São Paulo.
Espero contar muito mais, não sei bem a serventia disto para quem ler, mas sinto saudade e alegria por ter chegado até aqui. Me acompanhem.
Se deixei aqui algo não bem explicado ou que causou dúvidas, vou deixar aqui um e-mail específico para responde às mesmas, joseleitecoura@outlook.com
Este artigo foi escrito por Jose Leite Coura e publicado originalmente em Prensa.li.