A Missa do Galo, as linguagens escrita e visual e Machado de Assis
A linguagem escrita é muito diferente da linguagem visual, como ocorre por exemplo no caso do curta-metragem Missa do Galo, do Diretor Nelson Pereira dos Santos, baseado na obra homônima de Machado de Assis.
O final do conto de Machado de Assis é mostrado de forma diferente da que é exposta no curta-metragem, até porque a adaptação de textos (contos, crônicas, peças de teatro, livros, entre outros) para o cinema sempre esbarra em algumas dificuldades de ordem técnica, até pelo fato de serem linguagens completamente distintas.
A linguagem escrita é mais elaborada, é uma narrativa mais intimista, que conduz mais profundamente à reflexão a partir de cenas do cotidiano. O modo de narrar aparentemente é mais completo e profundo do que na linguagem cinematográfica.
Joaquim Maria Machado de Assis
Joaquim Maria Machado de Assis, que também foi o primeiro diretor da Academia Brasileira de Letras durante dez anos, é considerado, por sua obra e estilo, um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos.
Ele publicou um total de 10 romances, 10 peças teatrais, 200 contos, cinco coletâneas de poemas e sonetos e mais de 600 crônicas. Suas principais obras são:
- Memórias Póstumas de Brás Cubas
- Dom Casmurro
- A Mão e a Luva
- Helena
- Quincas Borba
- Iaiá Garcia
- Ressureição
- Memorial de Aires
- Esaú e Jacó
- Casa Velha
Dono de um grande dom para a observação, descreveu o dia a dia da sociedade do Rio de Janeiro com profundidade. Ou seja, descreveu em minúcias a realidade do que via e ouvia e, portanto, seu estilo se enquadra dentro do movimento que ficou conhecido como Realismo.
O pano de fundo das crônicas de Machado, a sociedade carioca, lembra um pouco a obra do escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, que também toca em temas sensíveis como o casamento, o adultério e as hipocrisias da sociedade.
Machado de Assis se encontra no “contar”
Tanto no seu conto Missa do Galo quanto no curta-metragem sobre essa mesma obra, é possível observar o detalhamento, a preocupação de descrever a história ponto a ponto, que são duas das características do Realismo, movimento que tem em Machado de Assis seu precursor e o expoente maior aqui no Brasil.
Não há pressa em chegar à conclusão, chegar ao final da história machadiana. Na verdade, Machado de Assis se encontra no “contar” muito mais do que no “concluir”.
No entanto, a vida de Machado de Assis não tinha nada de lentidão. Aliás, muito pelo contrário. Ele ocupou inúmeros cargos públicos, como por exemplo a importante Diretoria do Comércio, na Secretaria de Estado da Agricultura, Comércio e Obras Públicas do Brasil, além de ser o fundador da Academia Brasileira de Letras, ao lado do também escritor Joaquim Nabuco.
Do Livramento ao topo
Natural do Rio de Janeiro, onde nasceu em 21 de junho de 1839, na Chácara do Livramento, foi o primeiro filho do mulato Francisco José de Assis, um pintor e decorador de paredes, e da imigrante portuguesa Maria Leopoldina.
Ele passou sua infância e adolescência no bairro do Livramento. Seus pais viviam na chácara do falecido senador Bento Barroso Pereira e sua mãe era a protegida da dona da casa, D. Maria José Pereira.
Machado de Assis tinha uma origem muito humilde. Sua família era bastante carente, porém culta e, por isso, mesmo sem frequentar a escola, Machado era capaz de ler e escrever.
Obteve uma grande ascensão profissional e tornou-se famoso pela qualidade ímpar de sua escrita, o que se vê claramente no conto Missa do Galo, que na verdade, enquanto obra, é muito melhor do que o curta-metragem realizado por Nelson Pereira. A Missa do Galo escrita é machadiana. O curta-metragem, nem tanto.
Machado de Assis começou sua vida profissional na Tipografia Nacional, trabalhando junto com o também escritor Manuel Antônio de Almeida, autor do famoso livro “Memórias de um Sargento de Milícias”.
Machado destacou-se logo cedo, escrevendo crônicas, pequenos relatos do cotidiano, que acabaram por inspirá-lo na sua jornada pelo Realismo, esse movimento estético predominante no mundo ocidental no fim do século XIX, contrapondo a subjetividade, buscando sempre fazer da arte uma representação fidedigna da realidade.
Esse movimento atingiu os artistas em geral: escritores, músicos, escultores, pintores, entre outros sempre atentos à veracidade das situações cotidianas.
Madame Bovary, romance de Gustave Flaubert, publicado em 1857, é considerado a obra inaugural do movimento realista, uma apreensão da realidade da forma mais objetiva possível.
Algumas características da obra machadiana e também do Realismo:
- valorizava a objetividade, o factual e as situações cotidianas.
- tentava explicar o real, o cotidiano, sem idealizações.
- tinha a prevalência das formas do romance e do conto.
- pretendia expor os fatos tais como eles são, sem idealizações.
- abrangia diversos campos da arte, como a literatura, as artes plásticas e a dramaturgia.
- na literatura, o gênero realista por excelência foi a prosa.
- tinha a impessoalidade como marca.
- fazia frequentes críticas às hipocrisias da moralidade da burguesia.
- retratava o adultério, a miséria e o fracasso social.
- a linguagem era culta e estilizada, escrita com proporção e elegância.
- diálogo direto com o leitor.
- descrições de tipos sociais ou situações típicas.
- longas descrições pormenorizadas.
- aceitação da realidade tal como ela é.
- abordagem psicológica das personagens como composição da realidade que vêem.
- cadência na linguagem, bela e ordenada.
- retrato apurado da psique humana
Desse modo, a realidade, matéria-prima da estética realista, não é feita apenas de fatos, mas de como as pessoas percebem esses fatos cotidianos. É o que se vê claramente no conto Missa do Galo.
Por volta de 1881, Machado adoentou-se devido à epilepsia, uma doença que, juntamente com a gagueira, o atormentou durante toda a vida.
Com a saúde abalada, também por causa dos remédios fortes que era obrigado a tomar, passou por um período muito pessimista, o que o inspirou a escrever o romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas”.
Machado de Assis morreu em sua residência, em 29 de setembro de 1908, após a perda da sua esposa, Carolina Augusta Novais, com quem foi casado por 35 anos. Ambos estão enterrados juntos, no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro.
Este artigo foi escrito por Sandro Mendes e publicado originalmente em Prensa.li.