Modernismo? Modernismos!
Bandeira, de Emmanuel Nassar (2000).
A modernidade se apresentou como ruptura. Prometeu um novo mundo, filho das revoluções liberais nos EUA e França, principalmente. Jogou abaixo o chamado antigo regime, feudal, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Agora um papel dizia que todos eram iguais perante a lei. Embora na prática sejam outros quinhentos. Nada disso veio de graça, é derramando muito sangue que o samba vai pra frente.
O primeiro ponto importante para entender o fenômeno do mundo moderno é que este depende de situações específicas. Estruturalmente, vem na esteira de uma abrupta metropolização nos países, centrada em grandes cidades que vão concentrar a riqueza e o acesso a tecnologia.
Na urbe é que os países se descobrem, países. Dela conflagram-se as nações, impulsionadas pela indústria, pela emergente imprensa, pela cultura em geral, e, por que não?, pelas revoltas e revoluções.
E o Brasil nisso?
No Brasil comemoramos este ano o centenário da Semana de Arte Moderna, de 1922. Sem dúvida muito importante na construção de parâmetros modernos em nossa cultura. Mas o que é tratado como polêmica, e não deveria, é o lugar dessa Semana em todo o processo.
Palavra repetida nesse artigo: todo fenômeno histórico (o qual a modernidade se enquadra) acontece em processo. Não há como falar em um modernismo no Brasil: o que há são modernismos.
O plural é importante para dar conta das décadas pelas quais atravessou o fenômeno (acabou?), implicando diferentes fases. A Semana, ao invés de súbita irrupção do modernismo em nossa sociedade, sofre uma inversão de polos, passa a cristalização de um processo que vem de antes.
Em nada diminui sua importância, apenas a realoca geograficamente na constelação. A Semana abre uma nova fase, colocando com mais ênfase necessidades brasileiras. Mas isso não seria possível sem todo o processo anterior.
O Brasil vive uma forte urbanização na virada do século XIX para o XX. A abolição da escravidão e a imigração estrangeira são alguns dos motivos. A expansão da malha ferroviária, para melhor escoar a produção cafeeira, e a construção de instalações públicas, como rede de esgoto, são outros.
Proclamamos - ou proclamaram - a República e reformamos - ou reformaram - a capital federal à época, o Rio de Janeiro, para integrar nosso país no concerto de nações modernas e liberais.
Daí temos os primeiros indícios da modernidade no Brasil. A urbanização e o desenvolvimento de uma camada de discussão pública, através da imprensa, colocaram na mesa as problemáticas, e filiações, do que era ser brasileiro.
Da virada do século, por exemplo, nascem instituições intelectuais como sociedades científicas e a ABL.
Os modernismos
Diversos escritores e cartunistas debatiam diariamente nos jornais e revistas aspectos do novo cotidiano. Dos bondes elétricos ao cinematógrafo. Das novas descobertas científicas a elixires miraculosos.
Todo esse caldeirão esquenta o que chamamos de “cultura da modernidade”. Vivemos um sentimento parecido, hoje em dia, com a transição para o mundo digital. Percebemos que as coisas estão mudando, mas segue em curso um processo pedagógico.
Podemos estender esse fio para a literatura, encontrando modernismo – e discussões sobre a arte brasileira – em Machado de Assis, Júlia Lopes de Almeida, Olavo Bilac, Arthur Azevedo, Graça Aranha e Lima Barreto por exemplo.
Nesses autores, cada um por sua via, encontram-se discussões sobre a cultura brasileira, inclusive projetando a ideia da síntese. O lundu africano encontrava o fado português, gestando o que iríamos nomear samba. O que há de mais moderno do que a mistura?
Artistas como Crioulo Dudu surgem nas gravadoras, cantando em ritmos alegres e dançantes a nova realidade brasileira.
O que nos leva à afirmação dos modernismos. A Semana entrou para a história mais de vinte anos depois de sua existência, lá pelas décadas 40/50. Num momento que São Paulo já figurava como centro industrial-político-econômico do país.
Certa feita, é uma maneira de consolidar a predominância paulista no cenário nacional, recuperando um fato e transformando-o no artífice de todo o processo.
A Semana, nesse sentido, estava muito bem localizada. Organizada no Teatro Municipal de São Paulo, lugar da elite, contava em seus quadros com intelectuais brancos, bem-nascidos e devidamente excursionados pelas exposições dos salões de arte europeus.
Quem passeou pela Europa mostrando sua arte, e não levou fama alguma para a posteridade, foram os Oito Batutas – grupo do qual fazia parte Pixinguinha – encantando o velho continente com o chorinho.
Como não estender, também, esse outro fio até os anos 1950? O que seria da bossa nova sem o choro e o jazz? Nessa década o modernismo vivia outra fase.
Os centros urbanos dominavam totalmente o cenário, o território brasileiro encontrava-se bem mais integrado, e a indústria automobilística agitava a juventude. Havia um país forjado.
Até a escrita brasileira sofria mudanças, com períodos mais curtos e ideias sintéticas. O Jornal do Brasil revolucionava a forma de contar a notícia, sem rodeios, direto ao ponto. O teatro brasileiro encontrara a modernidade, com a encenação de O Mambembe (texto de Arthur Azevedo, de 1904) pelo teatro dos 7.
Poderíamos atravessar cada uma das décadas, encontrando signos modernos em todas elas. Todos dialogam com as estruturas da sociedade em seu tempo. Foi o bonde, o carro, o espaço, o computador, e assim vai.
O mais importante é o entendimento de que esse processo, dificilmente, tem uma data de nascimento (ou de morte) específica. Colocá-lo em perspectiva no avanço do tempo torna tudo mais frutífero.
Este artigo foi escrito por Matheus Dias e publicado originalmente em Prensa.li.