Mudança na matriz energética: evolução ou revolução?
Há muito tempo, mais de 80% da energia que usamos para realizar toda a gama de atividades humanas têm sido provenientes de combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás natural). Essas fontes de energia são poluentes, além de colocar em risco a independência e segurança energética da maioria dos Países.
Pode não parecer, mas estamos à beira de uma nova era no mundo da energia. Um movimento vem crescendo há décadas para substituir os hidrocarbonetos, motivado por problemas ambientais. No entanto, recentemente e abruptamente inovações disruptivas para geração e armazenamento de energia, aliadas a fatores econômicos e políticos ocorreram quase que simultaneamente, desencadeando o início de mudanças profundas e rápidas.
O cenário energético global mudará mais nos próximos 10 anos do que nos cem anteriores, com fortes transformações econômicas, sociais, políticas e ambientais, pois os elementos-chave de uma revolução energética estão se encaixando rapidamente.
Elementos chaves de uma nova era
O setor de energia está passando pelo mesmo tipo de tecnologia disruptiva que o Vale do Silício trouxe para os mercados mundiais.
As rápidas mudanças tecnológicas têm sido tão disruptivas que a energia renovável está se tornando muito barata. Tudo está ocorrendo tão rápido que não há risco econômico em acelerar o movimento para um mundo que não precise mais usar muito, se for o caso, petróleo, gás natural, ou carvão.
Um desses elementos chave são as tecnologias para armazenamento de energia, principalmente as baterias, pois com as inovações disruptivas elas se tornaram mais eficientes e estão viabilizando a adoção em massa dos fabricantes e dos consumidores a automóveis movidos a energia limpa. As pessoas agora podem comprar veículos elétricos que percorrem centenas de quilômetros com uma única carga, sem precisarem ir a um posto de gasolina.
Muitas pessoas podem se lembrar da primeira vez que seguraram um smartphone. Os dispositivos eram estranhos, caros e inovadores o suficiente para atrair multidões de consumidores. Então, menos de uma década depois, tornou-se incomum não possuir um. É assim que as mudanças acontecem quando há inovações eficientes.
Essa mesma mudança que altera a sociedade, está acontecendo agora com os veículos elétricos. De acordo com uma análise da Bloomberg sobre taxas de adoção em todo o mundo, os EUA são o país mais recente a superar o que se tornou um ponto crítico de inflexão de veículos elétricos: 5% das vendas de carros novos movidos apenas por eletricidade. Esse limite sinaliza o início da adoção em massa, em que as preferências tecnológicas mudam rapidamente.
Esse é um comportamento que tem ocorrido com novas tecnologias mais bem-sucedidas como eletricidade, televisores, telefones celulares, internet e até lâmpadas LED. Quando a adoção chega em 5% ocorre o mainstream mercadológico. Antes disso, as vendas tendem a ser lentas e imprevisíveis. Depois disso, segue-se uma demanda que acelera rapidamente.
Nos últimos seis meses, os EUA se juntaram à Europa e à China, coletivamente os três maiores mercados de automóveis, para ultrapassar o ponto de inflexão de 5%. Se os EUA seguirem a tendência estabelecida por 18 países que vieram antes dele, um quarto das vendas de carros novos poderá ser elétrico até o final de 2025. Isso seria um ano ou dois à frente da maioria das principais previsões.
O veículo elétrico terá um papel importante na disseminação da adoção de fontes de energia limpa, pois ele é utilizado por quase toda população de diferentes níveis econômico, tem muita capilaridade em toda sociedade e traz vários apelos que motivam a adoção em massa: o custo de aquisição, manutenção e abastecimento é mais barato, traz independência energética e não prejudica o meio ambiente.
Na geração de energia, continuados avanços têm ocorrido com as Células Fotovoltaicas e tecnologias disruptivas têm surgido como os novos processos de eletrólises para o Green Hydrogen. Além disso, outras tecnologias parecem promissoras como, por exemplo, Rectennas Solar Cells e até mesmo a Fusão Nuclear, esta última com um horizonte temporal mais distante.
O custo da energia solar caiu 90% na última década, tornando-se uma das fontes mais baratas de eletricidade. Mas nem sempre foi assim. Na década de 1970, a eletricidade produzida a partir da energia solar custava 100 vezes mais do que a energia da rede. As turbinas eólicas não eram confiáveis e produziam uma pequena fração da energia quando comparadas às turbinas de hoje.
Várias são as inovações para armazenamento visando fonte estacionária de energia. Recentemente, cientistas da Universidade de Tecnologia Sueca Chalmers desenvolveram um sistema de armazenamento de energia solar que pode armazenar eletricidade por anos, utilizando um líquido com hidrogênio, carbono e nitrogênio.
A invasão da Ucrânia pela Rússia e a ameaça do Vladimir Putin em cortar o fornecimento de gás para Europa acendeu o alerta de quão frágil estão vários países em função da dependência energética. Isso desencadeou reações políticas inesperadas e antecipou a transição energética em quase uma década.
“É incrível a rapidez com que os europeus se moveram”, disse Sam Ori, diretor executivo do Instituto de Política Energética da Universidade de Chicago. “Eles estão correndo em direção à eletricidade limpa.”
Há, agora, um impulso político imparável por trás das ações para combater a dependência energética, aliado aos antigos apelos motivados por mudanças climáticas. Resultado disso é que o mercado está ajudando a impulsionar as políticas, com trilhões de dólares em fundos governamentais e sociais ambientais, incentivando as empresas a investir na mudança energética.
Todos esses elementos chave e outros não citados aqui têm resultado em um crescente esforço conjunto que está exortando as empresas, a sociedade e os formuladores de políticas governamentais a abraçar a necessidade, na verdade, a inevitabilidade da transição para uma “nova” era liderada pela mudança energética.
A energia de uma nova era
A revolução industrial durou 100 anos. A revolução digital, duas décadas. A próxima revolução global, a revolução energética, já começou. Mas quão justo e quão rápido isso acontece é o maior desafio do nosso tempo.
Parece ser senso comum, e Jeremy Rifkin afirma, também, que as grandes mudanças de paradigma da humanidade ocorreram em função das transformações na matriz ENERGIA/COMUNICAÇÃO/TRANSPORTE. Toda vez que há uma mudança significativa nessa matriz, ocorre uma transformação profunda na humanidade. Isso ocorreu com a economia feudal, com a primeira e segunda revoluções industriais.
Na segunda revolução industrial a descoberta do petróleo e a invenção do motor a combustão interna e do telefone levaram ao surgimento de uma nova matriz COMUNICAÇÃO/ENERGIA/TRANSPORTE, que dominaria o século 20.
A mudança da locomotiva a vapor, trafegando entre pontos fixo, para o transporte por carros, ônibus, caminhões e aeronaves movido a motores a combustão interna expandiu radicalmente o alcance da atividade econômica. O telefone, ao contrário da impressão e do telégrafo da primeira revolução industrial, podia estar em qualquer lugar, a qualquer momento, coordenando uma atividade econômica mais volumosa, possibilitada pela era automotiva.
As mudanças que a energia limpa está impulsionando tem impactos nos transportes, nas comunicações e, principalmente na economia. Estima-se que quase 2/3 da energia que iremos utilizar será produzida e consumida localmente, em residências, indústria etc. Isso muda o modelo de geração e distribuição de energia para um conceito de Autonomous renewable energy systems.
A energia será captada ou gerada de várias formas e de maneira abundante, permitindo que os transportes tenham mais autonomia e potência para percorrer maiores distâncias com mais velocidade. Os meios de comunicação também dependem de energia. Quanto mais potência e maior taxa de transmissão, mais energia necessita. Essa limitação, em muitos casos, pode deixar de existir.
Um dos efeitos na economia é que a energia limpa, ao contrário dos combustíveis fósseis, espalha melhor a riqueza, pois a cadeia de valor é mais capilarizada pelos vários segmentos sociais e países.
A energia limpa tem o potencial de fornecer acesso universal à energia de forma segura e impulsionar o desenvolvimento econômico. Isso já está acontecendo, pois ela distribui melhor a riqueza, aumentando o consumo e criando mais empregos.
A IEA calculou que em uma transição total para energia limpa, a quantidade estimada de empregos ganhos em relação aos perdidos mais que dobraria em quase todos os setores, com uma adição líquida de 22,7 milhões de novas vagas. As energias renováveis criam quase 3 vezes mais empregos por cada US$ 1 milhão investido em comparação com combustíveis fósseis.
Os efeitos geopolíticos dessa revolução é que países que possuem economia muito dependente de produção e exportação de combustíveis fósseis terão que se reinventar ou terão parte de seu PIB diluído muito rapidamente nos próximos 20 a 30 anos. A Rússia, por exemplo, tem uma economia muito dependente dos combustíveis fósseis, pois eles representam cerca de 60% das exportações e quase 40% do PIB.
A energia é necessária em quase todas as atividades que realizamos ou coisas que utilizamos. Toda vez que a principal fonte de energia mudou no mundo, trouxe expressiva transformação econômica, política e social, além de viabilizar profundas mudanças nos transportes e nas comunicações. Por isso a primeira e segunda revoluções industriais são consideradas as mais profundas, com maiores mudanças para a sociedade, para as organizações e para os países.
A principal diferença dessa era que estamos vivendo é que se trata de várias formas de se capturar, gerar energia e de armazenar. Tudo isso ocorre quase que simultaneamente e modifica não apenas a matriz energética, mas, também, o modelo de geração e distribuição, com impactos sociais, econômicos e políticos, caracterizando uma nova Revolução Industrial.
Este artigo foi escrito por Narcelio Ramos Ribeiro e publicado originalmente em Prensa.li.