A mulher negra submissa? Em busca do príncipe encantado? Com a palavra Lélia Gonzalez
Nossa conversa de hoje traz reflexões da pensadora, intelectual, militante, negra, mulher, brasileira, Lélia Gonzalez sobre a história do Brasil, a partir da discussão de gênero e raça.
O intuito é registrar, mesmo que rapidamente, a questão filosófica que Lélia Gonzalez levantou sobre a dimensão interseccional nos movimentos, negro e feminista.
Isso significa dizer que ela denunciou a dupla discriminação, gênero e raça no Brasil final da década de 1970.
Vamos conhecer um pouquinho sobre o pensamento de Lélia Gonzalez?
Movimento Feminista século XX: Brasil
Podemos delimitar como um exercício reflexivo contemporâneo, que o movimento feminista do século XX tonalizou com cores vibrantes uma grande bandeira em favor dos direitos.
No início do século, as sufragistas reivindicavam seus espaços nas decisões políticas, pois até 1932, as mulheres não eram cidadãs.
Também vale sublinhar a defesa pelo direito a educação de qualidade, pelo direito ao trabalho no espaço púbico, pelo combate ao pensamento sexista de sexo frágil, entre tantos outros temas dentro dessa grande bandeira dos direitos.
E os contrapontos, as rupturas, as resistências frente às discriminações, continuam avançando até hoje (século XXI).
Temas presente no século XXI: retomada das discussões de legalização do aborto, direito a sexualidade plural, divisão sexual do trabalho, equidade em relação a qualquer tipo de gênero, corpo, raça, idade, religiões, etc.
Mulheres negras e o movimento feminista:
Essas pautas acima destacadas do movimento feminista no século XX, aparentemente homogêneas, uníssonas, eram na realidade pautas que camuflavam os diferentes percursos.
E na maioria das vezes, percursos díspares, entre mulheres brancas e mulheres negras.
Nesse sentido, Lélia Gonzalez, uma das principais intelectuais do pensamento antropológico brasileiro, abordou essa questão como fundamental para as discussões contemporâneas antirracistas.
Em outras palavras, a falta de profundidade nas discussões e na militância dentro do movimento feminista levou Lélia Gonzalez a pontuar esse comportamento como resquícios da construção do mito da igualdade racial.
Naquele momento histórico ela desenvolveu a problematização da democracia racial e fundamentou sua teoria de feminismo negro em sua perspectiva interseccional, articulando gênero, raça e classe.
Nas palavras de Lélia,
“E nesse trabalho tem dado para sacar, por exemplo, que pelo fato de não ser educada para se casar com um ‘príncipe encantado’, mas para o trabalho, a mulher negra não faz o gênero da submissa. Sua prática cotidiana faz dela alguém que tem consciência de que lhe cabe batalhar pelo ‘leite das crianças’ [...], sem contar muito com o companheiro (desemprego, violência policial )e outros efeitos do racismo e também do sexismo”.
Esse trecho esta presente em Lugar de negro, como aponta Daniela Mercier.
Movimento Negro Unificado (MNU):
Na década de 1970, mais precisamente em 1978, Lélia fundava, junto de seus companheiros e companheiras de ideias, o Movimento Negro Unificado (MNU).
E foi dentro do movimento negro que vivenciou a dificuldade em se posicionar diante da superioridade numérica masculina, ou seja, percebeu que havia muitos homens negros sexistas.
Segundo ela: homens negros não entendiam a necessidade de discutir nem reconheciam a dominação masculina sobre as mulheres, acusando as feministas de divisionistas.
Outro apontamento que Lélia ressaltou em sua militância, em seu feminismo diário, etnográfico, foi justamente no cerne do movimento feminista, como abordamos anteriormente.
Como por exemplo, mulher negra não era “sexo frágil”, pois sustentava, na maioria das vezes a família, e tampouco era rainha do lar, visto que o espaço publico era o seu ambiente de trabalho.
E assim, observou que as discussões dentro do movimento negro eram limitadas também. Não se conseguia alcançar uma dimensão interseccional, ou seja, expor a existência da dupla discriminação, gênero e raça, sequer fazia parte da agenda.
Era um assunto totalmente desconhecido, ignorado, reprimido dentro das reivindicações da época.
Nesse sentido, nos dois movimentos, no negro e no feminista, foi possível salientar elementos autoritários mascarando bandeiras de liberdade, de igualdade, de garantia de direitos equitativos.
Novas perspectivas: Feminismo Negro
E foi exatamente nesse contexto de incompreensão que a mulher negra inicia uma caminhada pelos seus direitos, tendo como destaque o II Encontro Feminista Latino-americano, realizado em São Paulo em 1985.
Nesse Encontro a premissa para um feminismo negro evidenciava suas proporções e adesões em busca da visibilidade da mulher negra na história do movimento feminista e por assim dizer, dentro da história do Brasil.
Nomes como Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro começaram, a partir desse marco, a caracterizar o pensamento antropológico e histórico brasileiro.
Sueli Carneiro fala que, “Desde que vi e ouvi Lélia Gonzalez pela primeira vez, me decidi politicamente pela militância na questão da mulher negra”.
E ainda destaca que a fundação do Geledés, por exemplo, foi influenciada pelo Nzinga, coletivo de mulheres negras criado por Gonzalez e outras ativistas em 1983.
A voz de Sueli Carneiro também é colheita, e continua a influenciar a escrita da história. Ou seja, a historiografia brasileira consegue, no século XXI, escrever sob novos olhares, sob novas narrativas e assim, fazer novas perguntas.
Perguntas estão sendo feitas, como a de Sueli Carneiro sobre mulher negra e trabalho no espaço público.
Sueli Carneiro: Mulheres negras, rainhas do lar?
Sueli Carneiro é, então, outra referência intelectual para os estudos culturais brasileiros que define essa discussão, justamente apresentando perceptividade as camadas, que muitas vezes ficaram ocultas, dentro do movimento feminista.
Ela indica, a partir de suas pesquisas, que as mulheres negras sempre estiveram nas ruas, vendendo seus quitutes, lavando roupas em fontes, ocupando as ruas como prostitutas, ou ainda na escravidão trabalhando tanto na casa grande como nas lavouras.
Dentro desse âmbito histórico, as mulheres negras não entendiam a luta feminista das mulheres brancas, e isso durante boa parte do século XX.
Ou seja, as mulheres negras nunca foram sexo frágil, tampouco, “rainhas do lar”, seu sustento e sobrevivência vinham da rua, desde sempre.
E assim a questão interseccional, articulando gênero, raça e classe, ganha mais discussão, debate, na agenda política do século XXI.
Finalizando
Lélia Gonzalez e outras mulheres, como Sueli Carneiro, fizeram as ponderações para as mudanças, para o rompimento do modelo.
Muitas mulheres se comprometeram com a delação, com a interrupção e com a descontinuidade dessas condutas, desses papéis normativos.
Com certeza hoje somos mais porque tivemos e temos essas grandes referências.
Obrigada pela conversa, abraço fraterno e até o próximo encontro.
Imagem - Kehinde Ogunsanya no Pexels
Este artigo foi escrito por Fabiana Kretzer e publicado originalmente em Prensa.li.