Não é possível separar o joio do trigo
A guerras às drogas não conseguiram atacar a lei da oferta e demanda, mas também as estruturas econômicas das grandes organizações ligadas ao crime possibilitaram o enriquecimento e a expansão do poder das grandes organizações, com destaque para os países mais pobres.
Roberto Saviano, no seu livro Zero, Zero, Zero, retrata de forma brilhante a estrutura econômica baseada na elevada margem de lucro proveniente do comércio de cocaína, com destaque para o mercado europeu, estadunidense e latino-americano, sendo a última região a grande produtora de cocaína no mundo.
A cocaína apresenta um grande percentual de lucro, pois na sua produção o produto gerado apresenta 85% de pureza e pode ser vendida por pequenos traficantes com 15% de pureza. A diminuição da pureza está relacionada à proibição e os produtos que são misturados para potencializar os lucros, que prejudicam a vida dos usuários.
É importante destacar, nos países mais pobres, o elevado volume de recursos financeiros controlado pelo narcotráfico, associado à fragilidade do mercado interno dos países. Inclusive, os controladores dos grandes cartéis figuram entre as pessoas mais ricas destes países, com destaque para as regiões produtoras.
Nos países produtores mais pobres, a economia legal torna-se dependente do capital ilícito, e também atua diretamente contra o Estado Democrático de Direito e ordem pública, através de corrupção policial, lavagem de dinheiro, ocupações e controle de territórios, mas também mobilizações contra a ordem constitucional vigente.
Os volumes arrecadados estão hoje na casa de centenas de bilhões de dólares, que movimentam-se por meio do sistema financeiro legal e impulsionaram o mercado de bancos até mesmo durante a crise de 2008, a maior crise do modelo neoliberal antes da crise gerada pela pandemia de Covid-19. Mesmo em momentos de crises econômicas, o comércio de drogas continua a todo vapor e se consolida como uma ferramenta importante de acúmulo de capital e mecanismo de reprodução a partir do capital financeiro.
Para reforçar a análise de Saviano, Soares¹ (2019, página 171) cita:
O buraco inicial [a partir da crise de 2008] representava algo em torno de 1 trilhão dólares. Naquele momento, só um setor da economia continuava a girar sem problemas de liquidez: o tráfico de cocaína, que lavou de imediato $352 bilhões, injetando esse montante nas instituições financeiras desidratadas. Cerca de um terço da liquidez mundial era dinheiro sujo de sangue.
Ainda, segundo a reitora da Unifesp Soraya Smaili², os valores movimentados a partir do comércio de drogas ilícitas chegam a aproximadamente $ 1 trilhão de dólares, valor esse equivalente a 35% do PIB nacional ou 1,5% do PIB mundial. Grande parte desse valor é usada para investimentos em setores econômicos formais.
Nas últimas décadas, o consumo de cocaína e opioides se tornou democrático no mundo e as grandes organizações criminosas precisavam profissionalizar a administração dos valores arrecadados, com isso não conseguimos mais distinguir o joio do trigo, ou seja, quais são os elos lícitos e ilícitos na dinâmica das facções.
As principais organizações, segundo Soares (2019, página 174):
(...) As principais facções passaram a investir em uma gama de atividades com elevada margem de lucro e lavam os capitais na aquisição de hotéis, restaurantes, redes de supermercados, shopping centers, ações com criptomoedas, além de megaempreendimentos imobiliários e vultuosos investimentos em energia, com destaque para petróleo e gás.
As instituições financeiras nunca se importam com a origem dos valores que são depositados, porque geram valores necessários para alavancagem e sobrevivência dos bancos e instituições financeiras, inclusive nos países desenvolvidos. Essa omissão realizada por instituições financeiras de alcance global permite uma expansão das grandes organizações criminosas, e o controle político e econômico em muitos espaços nos países mais pobres.
Os bilhões de dólares anuais movimentados pelos narcodólares sustentam uma parte importante do mercado financeiro global e da acumulação do capital. A maior parte do capital circula preferencialmente nos países desenvolvidos, por meio das bolsas de valores e grandes empreendimentos financeiros, enquanto os países subdesenvolvidos continuam apresentando os maiores índices de homicídios, em especial a Colômbia, Bolívia, Peru, mas também o Brasil e o México.
Portanto, no capitalismo financeiro e globalizado não é possível distinguir o quanto de dinheiro auferidos por atividades ilegais circula no setor formal. O volume de recursos movimentados pelo comércio de drogas ilícitas se parar de circular na economia mundial provoca uma crise econômica global maior do que a de 2008, ou seja, os recursos ilícitos garantem a acumulação de capital.
¹ - Soares, Luiz Eduardo, Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos / Luiz Eduardo Soares. - 1. ed. - São Paulo: Boitempo, 2019.
² - As drogas e a universidade pública - Comunicação (unifesp.br). Acesso em 16 de set. de 2022.
Este artigo foi escrito por Magno FERREIRA e publicado originalmente em Prensa.li.