Não existe nazismo do bem
Reprodução - via IMDB
Sou branca, hétero, catarinense, descendência teuto-italiana e católica; portanto, creio que este seja meu local de fala.
Acompanhei em choque um podcaster, dentro de um programa de expressiva audiência, fazer apologia ao nazismo. Me recuso a citar nomes porque, como diria o saudoso Ricardo Boechat, não quero dar palco para maluco.
Na legislação
Segundo a lei 7.716/89, que trata de preconceitos de raça e cor, o ato praticado pelo “comunicador” é considerado crime. Fiz a lição de casa e trouxe o texto oficial para as leitoras e leitores da Prensa.
O artigo 20 diz que “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” é crime. A pena: reclusão de um a três anos e multa.
No parágrafo segundo, “Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza”, a reclusão é de dois a cinco anos, mais multa.
O fato
Tal podcaster entrevistava dois deputados federais, debatendo sobre regimes radicais de esquerda e direita. De sopetão, sugeriu a criação de um partido nazista no Brasil. Como se não bastasse, saiu em defesa do “direito de ser antissemita”.
Como se “ser antissemita” fosse algo natural, como ser vegano.
Para não parecer exagero da minha parte, fiz questão de reproduzir aqui uma das declarações do rapaz: “A esquerda radical tem muito mais espaço que a direita radical, na minha opinião. As duas tinham que ter espaço. Eu acho que tinha de ter o partido nazista reconhecido por lei”.
Silêncio perigoso, ruído etílico
Talvez querendo evitar uma saia justa, nenhum dos deputados ali presentes manifestou-se contra, tampouco deram voz de prisão ao entrevistador, coisa que poderiam fazer, como cidadãos brasileiros e maiores de idade.
Depois de confrontado, o podcaster rapidamente alegou estar alcoolizado.
Vamos esclarecer uma coisa. Álcool não transforma ninguém em nazista. No máximo, te faz passar vergonha. Sei lá, sair dançando pelado por aí. Chamar urubu de meu louro, como diz a piada.
Primeiro, se essa inclinação veio à tona devido ao álcool, é que já estava ali, adormecida; segundo, apresentar-se sob efeito de álcool ou quaisquer entorpecentes é no mínimo um desrespeito aos entrevistados, ao público e aos patrocinadores.
Alguns dos patrocinadores, por sinal, rapidamente romperam seus vínculos contratuais com o podcast. Os que não o fizeram, parecem perigosamente simpatizar ou relevar a gravidade do ocorrido.
Mais estranha, contudo, foi a posição de alguns veículos de comunicação, levantando a bandeira da “liberdade de expressão” para tentar justificar o fato. O mesmo fizeram alguns políticos, alguns de expressão nacional. Inclusive, alguns que têm um discurso democrático, o que é ainda mais suspeito.
Monstros saindo das trevas
Nem me refiro a um certo veículo de comunicação de posição conservadora (e bastante radical nos últimos tempos) do qual até se esperaria algo nesse sentido. Falo de publicações bastante plurais.
O tal veículo conservador e pró-governo não ficou de fora: um de seus comentaristas chegou a debochar do assunto, fazendo o tradicional sieg heil nazista no vídeo, seguido por uma indisfarçável risadinha. Surpreendentemente rechaçado pelo apresentador do programa.
Nos dias seguintes, uma turba de apoiadores tanto do comentarista quanto do governo (o que é ainda mais assustador) apressou-se em defendê-lo através das redes sociais, solicitando ainda um “boicote” à emissora, que em um inédito ato de lógica, o demitiu. Foi a clássica cena do cachorro raivoso correndo atrás do próprio rabo.
Em um número expressivo de postagens provaram que o sieg heil feito pelo rapaz é um ato habitual dele. O que só piorou a situação. Faltou o carimbo com a suástica e o diplominha de nazista.
Vamos definir as coisas por aqui: racismo, nazismo, fascismo, não são “liberdade de expressão”. São crimes. Previstos na Constituição.
Quem muito fala, fala besteira
Os podcasts, assim como a Internet, nos disponibilizaram uma diversidade de expressão e opinião sem igual na História. Mas do mesmo modo em que passamos a ter voz, os mais variados tipos de malucos radicais também.
Sou contra qualquer tipo de censura ou regulação de imprensa ou mídia. Mas existe (ou existia) algo chamado bom senso. Ter microfones e câmeras abertas para pessoas com ímpetos autoritários, eugenistas e racistas é totalmente inconcebível.
Se opiniões polêmicas atraem audiência, cliques ou patrocinadores, também atraem o pior da humanidade. Somos diariamente colocados à prova por declarações podres e abjetas de uma parcela da sociedade que saiu das sombras. Vermes que resolveram tripudiar de tudo o que nos mantém minimamente civilizados.
Para anotar e memorizar:
Não existe ditadura boa. Nem de direita, nem de esquerda.
Não existe teoria eugênica boa.
Não existe intolerância do bem.
Estamos em um ano eleitoral que promete ser absurdamente nojento, devido a ação de milícias digitais. É bom que saibamos desde já definir o que é liberdade e o que é crime.
Os primeiros a clamar por esse tipo de liberdade também são os primeiros a pedir o fim das democracias. Seria apenas paradoxal, se não encaminhasse para um desfecho trágico.
Eu volto.
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.