Não Olhe Para Cima - Crítica
A frase máxima de Thomas Hobbes "O homem é o lobo do homem" já foi repetida à exaustão na literatura política e cinematográfica. Há quem defende que o cinema, como uma forma de arte, não pode ser incubido de realizar críticas e mostrar na grande tela (hoje também nos smartphones) a realidade de uma época. A própria natureza da sétima arte se mostrou política. Os filmes de Chaplin são imortalizados e como não citar os filmes que durante a 2° Guerra Mundial elevavam os ânimos das tropas?
Saltando para o século 2021 e em tempos de pandemia de covid-19, outra crise, desta vez estampada pela gigante do streaming, Netflix, Não Olhe Para Cima foi lançado e atraiu críticas mistas, acalorando os debates nas redes sociais. Tanto o filme, quanto os atores entraram para os tópicos mais comentados do Twitter e tanta discussão não é a toa.
De forma caricata, beirando a cômica em certos momentos, Não Olhe Para Cima narra a descoberta de um cometa de proporções apocalípticas para destruir o planeta Terra e a saga dos astrônomos Randall Mindy (Leonardo Dicaprio) e Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence) em mostrar à população a seriedade da descoberta. A crise que pode desencadear a extinção da humanidade ocorre em meio a um período eleitoral turbulento nos Estados Unidos. A presidente populista Janie Orlean (Meryl Streep) nega a ciência e seu time de assessores se preocupam apenas com a corrida eleitoral.
Guardadas as proporções, o filme cria paralelo com o cenário atual de pandemia e negação de verdades científicas que lutam contra o apoio da mídia em defender versões ridículas e argumentos toscos vociferados por políticos egoístas que se preocupam com a própria imagem. Qualquer semelhança com a realidade não é simples coincidência. A película funciona em captar a atenção e surpreende pelo final não tão previsível. Ela joga os holofotes para os mecanismos utilizados dentro da estrutura midiática, por vezes ignorados pelo grande público, em desacreditar fatos e construir versões.
Como um retrato da atualidade, a polarização política em torno de um fenômeno astronômico (que na vida real tem a vacina como vítima) impede a adoção de medidas de contenção para evitar a iminência do sinistro. Os cientistas são criticados e a eles são atribuídos todos os tipos de ofensas e rotulações esdrúxulas.
Diversos filmes apocalípticos mostram a comunidade científica ser ignorada e toda a humanidade pecar pela falta de bom senso de poucos. O que torna este filme diferente é o uso das redes sociais, que se tornaram onipresentes, explicitar os milhares de comentários críticos ao fato científico, oriundos de que não tem conhecimento algum do tema. Somado a este cenário, o uso político da negação acerta em cheio ao questionar se a realidade é tão diferente da ficção. Mesmo com a evolução tecnológica, a burrice puramente da condição humana nos torna egoístas e nos torna lobo de uns aos outros. Hobbes estava certo.
Não espere um filme cult ou metafórico similares aos "A chegada" de Denis Villeneuve e "O Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças" de Michel Gondry. A sátira é cômica em alguns momentos e reforça estereótipos de líderes populistas. Ao mesmo tempo em que se ri ao ver a besteira negacionista e achar que ela só pode ocorrer na ficção, de forma imediata percebe-se bobagem similar ser presenciada em nosso dia a dia. Mesmo não tendo caráter cult, a direção sim funciona ao criar alusão para o aspecto que torna o filme tão real: o negacionismo e seus reflexos, seja bizarro ou crítico. Esse aspecto nos coloca, de certa forma, dentro filme, já que a ponte para com a realidade foi içada.
Claro, as soluções almejadas para evitar a chegada do cometa não são fáceis e é preciso muito mais do que esforço político para alcança-las. De forma irônica, o filme ressalta, ainda que não de forma direta, como o poder precisa ser exercido por aqueles que têm capacidade hábil de utiliza-lo. Líderes fracos ao mesmo tempo que entretém pelas suas palhaçadas, tem sangue em suas mãos debaixo de tantas risadas.
Nota: 8/10
Este artigo foi escrito por Douglas Alves e publicado originalmente em Prensa.li.